segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Manuel, o próprio






Que posso dizer do Manuel?  Quase nada, pois dele pouco sei. Nos conhecemos quando cheguei em Garopaba no começo dos 90. Era uma fria tarde de julho e a chuva me surpreendeu na praia do Siriú durante um passeio. Chuva pouco usual pra essa época do ano, veio com raios que clareavam o céu sobre um mar de chumbo Olhei para um lado e outro e divisei, a uns cem metros, os restos de um rancho de pesca onde poderia me abrigar. Quase não me dei conta que para lá também se dirigia alguém vindo no sentido contrário. Era o Manuel.
Sentamos lado a lado sob a palha escassa. Nos cumprimentamos e foi ele quem puxou conversa. Mas em vez de referir-se à chuva, falou-me da praia como se soubesse que eu era um recém chegado a estas belezas..Conversamos muito tempo sobre dunas e peixes. Dei-lhe meu endereço e em poucos dias ele me apareceu em casa numa hora que, depois soube, era seu costumeiro horário de visitas. Meia-noite e meia. Também, como é de seu costume, não quis entrar e ficamos charlando sentados sobre o murinho que dava do quintal para a rua. Naquele dia falamos sobre o silêncio.
Até hoje tento saber de onde ele é, mas é difícil. Às vezes seu sotaque é de manezinho da ilha, outras é tipicamente de biqüira garopabense, mistura palavras em castelhano tal qual os gaúchos da fronteira e constrói frases  como um alfacinha. Também não sei como ganha a vida nem onde mora. Nunca me disse. Creio que é pros lados do Capão.
Manuel não tem computador nem televisão, mas, como estava sentindo mais necessidade de informação do que antes sentia, construiu um rádio. Mas só ouve “A voz do Brasil”, o futebol e, de dois em dois anos, o programa eleitoral. Explicou-me que as músicas de que gosta não tocam no rádio. São as cantigas ouvidas na infância que lhe interessam. Jornais, só lê os velhos. Prefere os livros. E dos livros, os antigos. Também lhe interessam os santinhos de políticos e os panfletos publicitários.
Quando aparece para nossos serões vem pedalando sua bicicleta composta de peças de cinco marcas de quatro nacionalidades diferentes. Por referências que faz, presumo que tenhamos idade igual ou muito próxima. Manuel nunca aborda temas pessoais o que faz sua prosa rica e interessante.  Quando uma vez lhe disse que o mundo me interessava como palco e não como platéia, ele apoiou a definição e só se mostrou um pouco chateado por eu não me lembrar onde a havia lido.  Manuel é muito rigoroso com relação a isso e quando cita, diz o autor e sua contingência histórica. 
Semana passada eu estava em casa buscando alguma coisa na internet quando  ouvi os cachorros latindo, olhei o relógio e vi que os ponteiros estavam verticalmente alinhados. Fui ao portão receber o amigo. Embora chovesse copiosamente e ele viesse ensopado, preferiu não entrar. Ao invés disto abriu um enorme guarda-sol que trazia atado à bicicleta, fincou-o na terra encharcada e sobre dois tijolos nos sentamos para prosear.
Recusou a oferta de café e como nunca chega de mãos abanando, foi até a bicicleta e de uma cesta de vime, que está sempre presa ao bagageiro, retirou uma garrafa de coca-cola bem pequena , daquelas de vidro que já não circulam desde os anos 70. Um pedaço bem cortado de sabugo de milho servia como rolha e dentro havia uma cachaça de alambique curtida no butiá. Aproveitamos os eflúvios da cana para meter o pau nos políticos daqui e alhures.
Quando Angela Merkel e Agripino Maia deixaram de interessar, caímos na política local. Manuel tirou do bolso da jaqueta um saquinho de plástico com vários papéis e depois de vasculhar por uns minutos, tirou de lá um panfleto que fazia referência ao projeto 78. Trata-se de um projeto de lei do executivo municipal que modifica o gabarito das edificações na cidade. Disso muito falamos confrontando os argumentos pró e contra. Manuel refletiu e depois de mais um gole sentenciou: _ É briga de cachorro grande. Tem toda a razão.
Por um lado os que são a favor do projeto manipulam a população dizendo que sem o aumento do gabarito não seria construída uma escola técnica federal em nossa cidade e isto se daria porque o terreno que possui o governo para tal fim é pequeno exigindo construção vertical.  Ora bolas, nesse caso bastaria criar uma lei excepcional liberando o número de pisos para entidades de ensino ou prédios federais. O que na verdade defendem é o direito do maior hotel daqui ampliar para cima seu número de habitações. É uma lei dirigida, elaborada sem levar em conta questões como o esgotamento sanitário e o trânsito, que seriam alterados com o aumento de residências e prédios comerciais. Por sua vez os partidários da manutenção do gabarito nos atuais dois andares, trazem argumentos tais como a preservação das características da cidade. Se fossem sinceros não teriam vindo morar aqui, pois eles, assim como eu, ajudaram a mudar as tais características da cidade, transformando-a de vila simpática de pescadores num balneário tolo como os demais, sem vida própria sempre a espera dos turistas. Ajudamos a transformar pescadores em empregados da construção e ajudantes de cozinha. Claro que sem a ajuda dos especuladores locais, nada disso seria possível.
Sempre é a mesma coisa. Os interesses de poucos são colocados como se tratasse do interesse de todos. Por isso é que até hoje os gaúchos comemoram a guerra dos farrapos (uma briga de oligarcas) como se fosse uma revolta popular contra desmandos do governo central. E para esconder o mais elementar fato daquela guerra fratricida, a chamam de revolução farroupilha.




















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