quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Cu-de-ferro







Pelo geral usavam óculos e eram estudiosos, esforçados. Seus cadernos e livros eram de uma pulcritude de dar nojo e inveja. Combinavam com seus cabelos, que repartidos de lado, não deixavam nenhum fio fora de ordem. Muito diferente de nossas grenhas de cujas pontas, pingava o suor da pelada recém encerrada pela sirene da escola. Nunca traziam a camisa rasgada por puxões ou pingada de picolé. Eles não chegavam cedo para disputar as bolas murchas que levávamos dentro das pastas junto ao material escolar. Tampouco participavam das brutas brincadeiras que costumávamos fazer. Dessas brincadeiras eu me lembro do pisão, (que consistia em dar forte pisada na pasta que alguém levava, distraído, na entrada ou na saída das classes) da cama de gato e da maldade suprema que era retorcer uma dessas borrachinhas que se usa para prender dinheiro, estira-las e soltar no cabelo das meninas. Para tirá-las só cortando a madeixa.
Para nós, eles eram os puxa-sacos das professoras pois estas sempre os tratavam com carinho e poucas reprimendas. Claro, não falavam com os colegas próximos durante a aula, não faziam as horríveis piadinhas infantis nem pediam para ir ao banheiro todos os dias. Eram os cus-de-ferro e os havia dos dois gêneros.
Dos garotos já não me lembro de nenhum. Lembro sim da Adalgisa, uma cu-de- ferro simpática que estudou comigo na sexta ou sétima série.Branquinha, comprida e desengonçada. Nós a chamávamos “Odalgisa” devido a uma propaganda que a fábrica de embutidos Sadia fazia na época, dizendo que a sua salsicha de tão boa, não era “a salsicha” e sim “o salsicha”.Ela não se incomodava com a brincadeira e até gostava de ser o centro de nossas atenções.
O termo cu-de-ferro só era usado entre nós, socialmente se dizia Ce Dê Efe. Hoje ambas as formas estão no dicionário. Vernáculo.
 Infelizmente o termo vai caindo em desuso. A última vez que ouvi a locução foi da boca de Joelmir Betting. Dizia o jornalista que não existe cê dê efe arrependido. Creio que o mesmo pensa o Ministro Luís Fux do STF. Pouco antes de assumir sua cadeira no Supremo, Sua Excelência disse em entrevista que se preparara para o cargo desde muito jovem e enquanto seus amigos iam pra pelada ele ia para os livros. Portanto era ruim de bola mas bom de estudo Cu-de-ferro assumido.
Mas como ia dizendo o termo vai caindo em desuso. Está sendo substituído por outro de origem estadunidense, “nerd”. Perde-se não só a sonoridade do belo vocábulo composto, como seu significado. A palavra norte-americana trás consigo outra conotação e conseqüência. Não consigo separa-la do comportamento dos jovens mostrados em filmes adolescentes daquele país. Mesmo tendo a palavra cu como principal elemento, nosso vocábulo é menos pejorativo. Chamar alguém de “nerd” trás embutido um desprezo pela cultura e o conhecimento muito ao gosto do americano médio.  E como o “nerd” merece desprezo e deve ser afastado do convívio dos “normais”, a conseqüência é o bullying..
Este outro termo das escolas americanas também invadiu nosso vocabulário e é mais daninho que o outro. Ao se usar a palavra no idioma estrangeiro, nossa sociedade já tão propensa à xenofilia, tende a glamourizar (desculpe o estrangeirismo) a covardia. Na visão de garotos, cuja infância foi passada em frente à televisão mamando todo tipo de estereótipos americanos, fazer bullying é inserir-se naquela cultura “superior”. É fazer parte de algo que se julga universalmente aceito. Ademais o vocábulo é excessivamente genérico. Tanto se refere, ao que em “brasileiro” se chama “encarnação”(apelidos e outras coisas de boca), como à violência física. Entre nós existe um limite claro entre as duas coisas. Para eles, não sei.
A escola americana sempre foi laboratório de tudo que a intolerância e a violência destilaram. Há um documentário em que várias pessoas conhecidas dão seu depoimento sobre sua vivência nas instituições de ensino daquele país..Entre eles está o grandalhão Penn Jillette, o mágico de Las Vegas e da televisão. Todos têm, do tempo de escola, experiências de dor e humilhação
 O “durão” Bukowski em um de seus escritos, coloca Henry Chinaski enfrentando um trabalho de descarregar carne em um frigorífico. Quando o cara não agüenta mais o peso do fardo e da idade, e todos a sua volta escarnecem, o alter ego de Bukowski, derrotado, lembra do pátio da escola americana.
Pois é desse pátio que importamos a novidade. Nossa escola, sem a experiência necessária para tratar o assunto, ao tentar tomar pé da situação, distribuindo panfletos aos alunos, alertando pais e estendendo faixas nas portas dos locais de ensino, já começa errando pela nomenclatura. Ao aceitar a palavra estrangeira, importa também um conjunto de valores.
Se no coletivo escolar essa importação dos termos vindos de outra cultura traz as contradições inerentes, no indivíduo dá-se igual e os cus-de-ferro já não são os mesmos. Ou por outra, os cus-de-ferro querem ser nerds.  






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