segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

O marmeleiro







Os primeiros nove anos de minha vida, vivi em minha cidade natal, Belo Horizonte. Na verdade passei esses anos num perímetro de uns poucos quarteirões. O Grupo Escolar Bernardo Monteiro era um dos meus limites, a igreja, outro. E saindo de minha casa no bairro do Prado, três quadras, Rua dos Andes abaixo, estava O Calafate, bairro onde vivia minha avó, tios e primas. Aí também morei por uns meses no ano de 1966..E é essa casa que tenho como referência daquele Belo Horizonte de então.
 Era uma casa de fundos que, junto com outra gêmea, ocupava o que teria sido o quintal da casa grande da frente. Chegava-se a elas por um corredor, que ao abrir-se abrigava um enorme pé de carambolas. Nesse tramo da infância comi mais carambolas que bananas. Já não me lembro em que mês os frutos maduravam, mas sim, da fartura de frutas que nos eram dadas pelos donos das casas, pois muito embora a árvore ficasse fora de seus muros e entre os nossos, todos sabiam que ela lhes pertencia  Esses, eram um casal de italianos vindos pro Brasil depois da guerra. Haviam sido prisioneiros de seus patrícios fascistas e, contava-se, que em sua casa não entravam batatas. No campo de prisioneiros eles tinham que buscar suas cascas no lixo dos soldados para amenizar a fome. Daí a ojeriza pelo tubérculo. Chamavam-se, coincidentemente, Seu Mário e Dona Mariana. Ela gorda, de boa estatura, falante. Ele gordinho e baixo e com um sorriso que emanava bondade. Na época das frutas, ele as distribuía pelo bairro e nós, privilegiados pela proximidade, éramos os primeiros a recebê-las. Amarelas, enormes, carnudas. Nunca mais as pude provar com tanto gosto. Por vezes comprei algumas nos supermercados, mas já não encontrei aquele sabor, tampouco aquele tamanho e suculência. Culpei o tabaco por ter me estragado o paladar. Mas sei que o que falta às carambolas de hoje é o sorriso de Seu Mário.
Outra árvore de minha infância foi um enorme pé de jatobá que frutificava em frente ao Grupo Escolar. Antes das aulas, os meninos se fartavam do fruto estranho e mal cheiroso. Jamais pude prová-lo. Seu cheiro me repugnava a metros de distância. Para não passar perto do sítio onde meus colegas se sentavam para saboreá-lo, eu dava a volta no quarteirão para evitar as náuseas que me provocava o jatobá. Horas depois de havê-los comido, a molecada ainda trazia no rosto e no peito da camisa, a penugem esverdeada do fruto nauseabundo.
No Rio, conheci o jamelão e as amendoeiras. Não provei de seus frutos e a amendoeira que mais me fala é a de Rubem Braga. Hoje tenho no quintal um pé de tangerina e alguns limoeiros de limão de peixe. Não conto o maracujá e o butiá, por ser um, ramagem e o outro, palmeira.
Mas se existe uma árvore que me frustra não conhecer é o marmeleiro. Parece que todos o conhecem, todos o tinham em seus quintais, pois sempre que surge na conversa algo relativo à educação dos filhos, alguém, para se desculpar pelas constantes surras dadas aos pequenos, cita que em sua infância seu pai dava-lhe com a tal vara de marmelo. E sempre se acrescenta que a vítima do espancamento tinha de ir buscar o instrumento de suplício. Já escutei a mesma história uma dezena de vezes. Sempre o pai, a vara de marmelo e a obrigação de colher a vara para ser espancado. Não há variações. Para não pôr em dúvida a veracidade da narrativa, devo acreditar que o Brasil é o maior produtor mundial de marmelo, embora eu nunca tenha visto um único marmeleiro. Creio ter visto a fruta, mas a memória não me dá recibo.
Hoje, quando se discute no congresso uma lei que tentaria por fim aos maus tratos dispensados aos filhos por pais e responsáveis, sei que escutarei mais umas tantas vezes a estória da vara de marmelo. Nos programas populares da televisão, o tema já é debatido e os telespectadores que opinam, são quase unânimes em seu repúdio ao projeto de lei. Nossa sociedade é saudosa da vara de marmelo e de seu poder pedagógico.
Não sei se eu seria uma pessoa melhor ou pior se não tivesse levado tantas chineladas e beliscões como levei, mas sei, que aprendi mais com carambolas que com safanões.


Um comentário:

  1. Eu vi um marmeleiro! Juro! Foi em Pedra Azul, MG, lá pelas divisas com a Bahia. Acho que é árvore de semi-árido - aquilo ali é uma terra meio caatinga/meio campos gerais - e é bem grande, talvez metade de um pé de jamelão, e frondosa. A fruta é sempre verde, lembra bem a maçã, quem sabe é maçã tropical. E sempre ácida. Eu comi quando criança, mas nunca mais vi depois de 1961, quando voltei pro Rio e pra Zona da Mata mineira. Nunca mais vi nem o fruto. Gostava, mas a acidez impedia de comer muito. Jorge, você certamente ouviu essas histórias de vara de marmeleiro contadas por mineiros das bandas nortistas do estado, porque pro lado de cá nunca ouvi ninguém falar nem de marmelo nem de marmeleiro. Ótimo texto - na infância tudo tem sabor especial, pro bem ou pro mal. Hoje, por exemplo, eu adoro caqui, mas odiava quando moleque, não sei por que, mas acho que por uma mera repulsa orgânica como a que o afastava do jatobá (que, aliás, não tenho a menor idéia do que seja. O Brasil é tão grande e tão variado que tem gente que não conhece sapoti mas sabe o que é bacuri, desconhece o gosto da pitanga mas tem na memória a cor e o cheiro da eugênia, e por aí vai.)

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