Os primeiros nove anos de minha
vida, vivi em minha cidade natal, Belo Horizonte. Na verdade passei esses anos
num perímetro de uns poucos quarteirões. O Grupo Escolar Bernardo Monteiro era
um dos meus limites, a igreja, outro. E saindo de minha casa no bairro do
Prado, três quadras, Rua dos Andes abaixo, estava O Calafate, bairro onde vivia
minha avó, tios e primas. Aí também morei por uns meses no ano de 1966..E é
essa casa que tenho como referência daquele Belo Horizonte de então.
Era uma casa de fundos que, junto com outra
gêmea, ocupava o que teria sido o quintal da casa grande da frente. Chegava-se
a elas por um corredor, que ao abrir-se abrigava um enorme pé de carambolas.
Nesse tramo da infância comi mais carambolas que bananas. Já não me lembro em
que mês os frutos maduravam, mas sim, da fartura de frutas que nos eram dadas pelos
donos das casas, pois muito embora a árvore ficasse fora de seus muros e entre
os nossos, todos sabiam que ela lhes pertencia Esses, eram um casal de italianos vindos pro
Brasil depois da guerra. Haviam sido prisioneiros de seus patrícios fascistas
e, contava-se, que em sua casa não entravam batatas. No campo de prisioneiros
eles tinham que buscar suas cascas no lixo dos soldados para amenizar a fome.
Daí a ojeriza pelo tubérculo. Chamavam-se, coincidentemente, Seu Mário e Dona
Mariana. Ela gorda, de boa estatura, falante. Ele gordinho e baixo e com um
sorriso que emanava bondade. Na época das frutas, ele as distribuía pelo bairro
e nós, privilegiados pela proximidade, éramos os primeiros a recebê-las. Amarelas,
enormes, carnudas. Nunca mais as pude provar com tanto gosto. Por vezes comprei
algumas nos supermercados, mas já não encontrei aquele sabor, tampouco aquele
tamanho e suculência. Culpei o tabaco por ter me estragado o paladar. Mas sei
que o que falta às carambolas de hoje é o sorriso de Seu Mário.
Outra árvore de minha infância
foi um enorme pé de jatobá que frutificava em frente ao Grupo Escolar. Antes
das aulas, os meninos se fartavam do fruto estranho e mal cheiroso. Jamais pude
prová-lo. Seu cheiro me repugnava a metros de distância. Para não passar perto
do sítio onde meus colegas se sentavam para saboreá-lo, eu dava a volta no
quarteirão para evitar as náuseas que me provocava o jatobá. Horas depois de
havê-los comido, a molecada ainda trazia no rosto e no peito da camisa, a
penugem esverdeada do fruto nauseabundo.
No Rio, conheci o jamelão e as
amendoeiras. Não provei de seus frutos e a amendoeira que mais me fala é a de
Rubem Braga. Hoje tenho no quintal um pé de tangerina e alguns limoeiros de
limão de peixe. Não conto o maracujá e o butiá, por ser um, ramagem e o outro,
palmeira.
Mas se existe uma árvore que me
frustra não conhecer é o marmeleiro. Parece que todos o conhecem, todos o
tinham em seus quintais, pois sempre que surge na conversa algo relativo à
educação dos filhos, alguém, para se desculpar pelas constantes surras dadas
aos pequenos, cita que em sua infância seu pai dava-lhe com a tal vara de
marmelo. E sempre se acrescenta que a vítima do espancamento tinha de ir buscar
o instrumento de suplício. Já escutei a mesma história uma dezena de vezes.
Sempre o pai, a vara de marmelo e a obrigação de colher a vara para ser
espancado. Não há variações. Para não pôr em dúvida a veracidade da narrativa,
devo acreditar que o Brasil é o maior produtor mundial de marmelo, embora eu
nunca tenha visto um único marmeleiro. Creio ter visto a fruta, mas a memória
não me dá recibo.
Hoje, quando se discute no
congresso uma lei que tentaria por fim aos maus tratos dispensados aos filhos
por pais e responsáveis, sei que escutarei mais umas tantas vezes a estória da
vara de marmelo. Nos programas populares da televisão, o tema já é debatido e
os telespectadores que opinam, são quase unânimes em seu repúdio ao projeto de
lei. Nossa sociedade é saudosa da vara de marmelo e de seu poder pedagógico.
Não sei se eu seria uma pessoa
melhor ou pior se não tivesse levado tantas chineladas e beliscões como levei,
mas sei, que aprendi mais com carambolas que com safanões.
Eu vi um marmeleiro! Juro! Foi em Pedra Azul, MG, lá pelas divisas com a Bahia. Acho que é árvore de semi-árido - aquilo ali é uma terra meio caatinga/meio campos gerais - e é bem grande, talvez metade de um pé de jamelão, e frondosa. A fruta é sempre verde, lembra bem a maçã, quem sabe é maçã tropical. E sempre ácida. Eu comi quando criança, mas nunca mais vi depois de 1961, quando voltei pro Rio e pra Zona da Mata mineira. Nunca mais vi nem o fruto. Gostava, mas a acidez impedia de comer muito. Jorge, você certamente ouviu essas histórias de vara de marmeleiro contadas por mineiros das bandas nortistas do estado, porque pro lado de cá nunca ouvi ninguém falar nem de marmelo nem de marmeleiro. Ótimo texto - na infância tudo tem sabor especial, pro bem ou pro mal. Hoje, por exemplo, eu adoro caqui, mas odiava quando moleque, não sei por que, mas acho que por uma mera repulsa orgânica como a que o afastava do jatobá (que, aliás, não tenho a menor idéia do que seja. O Brasil é tão grande e tão variado que tem gente que não conhece sapoti mas sabe o que é bacuri, desconhece o gosto da pitanga mas tem na memória a cor e o cheiro da eugênia, e por aí vai.)
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