quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

50







            No ano 2000 fui a Porto Alegre assistir um jogo do Galo contra o Internacional. Me hospedei num hotel do centro da cidade. Era o tipo de hotel que eu gosto, sem estrelas nem baratas. Havia feito a reserva desde casa e para minha sorte, ficava próximo ao local onde é realizada a feira do livro de Porto Alegre. Da janela do quarto via-se uma linda construção do outro lado da rua com arcos e uma calçada que se elevava sobre eles. A feira em si, me decepcionou. Pensei que ocorresse em local fechado, climatizado e com facilidades sanitárias. Acho que fui levado a pensar assim pela lembrança da Bienal do Livro do Rio e pela maneira que meus conhecidos gaúchos se referiam à feira. Os gaúchos são grandiloqüentes e quando falam das coisas do Rio Grande, não economizam em adjetivos. Uma descrição gaúcha do Rio Guaíba, por exemplo, nos faz crer que existe um Amazonas meridional ou um Rubicão que caudilhos e gaudérios um dia cruzaram para criar impérios.
No entanto aproveitei bem a feira e comprei alguns volumes. Uma bíblia, em cuidadosa edição das Irmãs Paulinas, que ademais de me dar alguma ilustração nas coisas sagradas, deixou evidente por suas letras diminutas, que eu estava precisando de óculos. Comprei também algo de ficção e um livro comemorativo:_Maracanã, 50 anos de glória, de Renato Sérgio, com bom texto e fotos do estádio em seus maiores momentos. No ônibus, voltando para casa, estava contente com minhas aquisições literárias e folheava o livro para não pensar na derrota para o Colorado. Estranhei que só havia uma foto da Copa de 50. Do gol de Ghiggia. Talvez fosse por problemas de direito de reprodução ou talvez o autor, diferente de mim, já não quisesse expor a ferida aberta naquele 16 de julho.
No mesmo ano de minha ida ao Rio Grande, havia adquirido os serviços de tv por assinatura e justo no dia em que cheguei de Porto Alegre, o canal Sportv começava a exibir uma série de programas para comemorar o aniversário do Maracanã. O primeiro episódio, como não podia deixar de ser, foi sobre a construção do estádio e a copa de 50. Com fotos, filmes e depoimentos, foi contada a derrota na final para os uruguaios.
As imagens nos são familiares. Ghiggia que avança pela direita, Barbosa que dá um passo para o meio tentando antecipar-se ao cruzamento, a bola passando entre o grande goleiro do Vasco e sua trave esquerda. Ao fim do jogo os jogadores brasileiros que deixam o campo em lágrimas e na arquibancada uma mulher volta-se para o lado da câmera e seu rosto é uma máscara de dor e decepção. Não sei quantas vezes vi o rosto da jovem de 1950 mas toda vez que vejo sinto vontade de abraçá-la e dizer-lhe:_ Eu também, eu também.
No entanto não há imagem nem testemunho confiável do que mais me doía em 50:_ O tapa. Diante de 200 mil pessoas, Obdúlio Varela teria dado um tapa na cara de Bigode. Ninguém viu. 200mil pessoas deviam estar lendo a Revista do Rádio e distraídas, não viram o uruguaio golpear nosso jogador. Mas a lenda persistiu e me assombrou durante anos. A simples referência àquele tapa me parecia uma ofensa pessoal e pior,  uma nação estapeara outra nação, humilhando-a. Só mais tarde fui compreender o que significava a criação daquele mito. Para nossa imprensa, que o criou e alimentou por décadas, o tapa era a comprovação de nossa inferioridade racial. Pusilânimes, nossos jogadores mestiços, mulatos, teriam aceitado o tapa dado pelo adversário racialmente superior. A mistura racial explicava a derrota. Para quem duvidasse, a “falha” de Barbosa era a pá de cal no assunto. Também no time uruguaio havia mestiços e um negro mas os mitos desprezam as evidências, mesmo as fotográficas. Durante anos o nome de Obdúlio me soou odioso. Mais odioso que a cara de fuinha de Ghiggia ou as feições de oficial nazista de filme americano de Máspoli.
Aos poucos pude extrair alguma verdade do monturo de tolices que foi publicado sobre a Copa de 50. De Nilton Santos ouvi que nosso técnico, Flávio Costa, não manjava nada. O oportunismo dos políticos da época também deu seu contributo para o fracasso e a imprensa, com seu ufanismo de ocasião, quis ganhar o jogo na véspera dando ao treinador uruguaio as manchetes que ele usou para motivar seu forte elenco. Agregue-se a isso a vaidade dos dirigentes esportivos que queriam luzir e  retiraram os jogadores da concentração no Joá levando-os para São Januário onde foram assediados durante todo o dia anterior ao jogo por jornalistas e toda espécie de sanguessugas do futebol.
Mas foi só no ano 2000 que tive a certeza de que tudo que aconteceu em 50 dentro das quatro linhas do Maracanã, foi de uma massacrante normalidade. Em seu depoimento para o programa do Sportv, Zizinho descreveu o ocorrido com a precisão que aplicava aos seus passes quando era jogador:_Os uruguaios jogaram melhor e ganharam o jogo. Pronto, era isso. A seleção brasileira fora derrotada por um adversário que jogara melhor. Não houvera tapa nem nada que maculasse a vitória uruguaia ou a honra dos derrotados. Fora um jogo de futebol, nada mais que isso.
Recentemente, assistindo o “Grandes momentos do esporte” da TV Cultura, fui novamente surpreendido por uma declaração que Zizinho fizera anos atrás. Dizia Mestre Ziza referindo-se à Copa de 50, que alguns dos jogadores de nosso time não eram tão bons como se dizia. O jornalista que o entrevistava nem sequer fez menção de perguntar por nomes. Não creio que Zizinho os citasse mas era obrigação do repórter perguntar. Na mesma entrevista dizia o craque que o grande jogador do São Paulo de seu tempo não fora ele e sim Canhoteiro. Pode-se inferir daí que Zizinho não era homem vaidoso e portanto sua declaração, a meu juízo, tem crédito. Mesmo sem ter visto jogar os homens de 50, ao longo dos anos vi muitos jogadores serem super valorizados. Bem pode ser que entre os daquela seleção também existissem os desse tipo.
No entanto nada do que vi e ouvi sobre 50 faz sombra ao maior dos dramas  daquela Copa. Refiro-me à crucificação de Barbosa. Jamais alguém sugeriu que a falha pudesse ter sido de Ghiggia, que aquela bola deveria ter sido cruzada e não arremessada ao gol ou que talvez na tentativa do cruzamento o tiro fora mal desferido indo parar no fundo das redes. De Barbosa lembro do depoimento que deu poucos anos antes de sua morte. Dizia que no Brasil a pena máxima era de trinta anos mas ele vinha pagando a sua há muito mais tempo. Disse isso com a voz débil dos humildes, com o sorriso dos que não podem impor-se pela revolta mas Barbosa estava gritando por justiça. De outra feita ouvi-o dizer referindo-se ao gol sofrido naquela final:_Eu fiz o certo e deu errado, Ghiggia fez o errado e deu certo.
À injustiça sofrida por Barbosa somou-se outra. Foi preciso passar mais de 20 anos para que outro goleiro negro, Jairo, vestisse a camisa da seleção brasileira e em copa do mundo só Dida em 2006.
Quando vencemos os uruguaios na semifinal da Copa do México, a imprensa de então, muito afinada com a ditadura, falou em vingança. Nada mais falso. 50 jamais será vingada, a menos que os uruguaios organizem um mundial e os derrotemos na final, em pleno Centenário. Ainda assim, isso nada serviria a Barbosa, a Bigode, a Zizinho. Aquela copa perdida vai continuar doendo como ferida que nunca cicatriza. A moça da arquibancada vai seguir sofrendo a derrota interminável. Eu também, eu também.











Um comentário:

  1. Sou Gaúcho e tua definição da soberba dos nascidos nos Pampas está perfeita. Lendo fatos da colonização do Rio Grande do Sul vemos que temos pouca identificação com o Brasil e mais com o Uruguai e a Argentina.Mas não se pode chegar ao extremo de dizer que somos brasileiros por opção pois o Tratado de Tordesilhas nos eliminava do Brasil.Tua cronica sobre a copa de 50 e seus bastidores foi muito bem construída, pois mostra o outro lado da moeda que nós brasileiros gostamos de esconder, ou seja, o outro nunca tem méritos e se ganhou foi porque nosso goleiro falhou.

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