Faz mais de 20 anos que não vou
ao cinema. O último filme que assisti foi uma fita da Cicciolina. De minha casa
até o cinema mais próximo são 90 quilômetros . Quando ia, nunca chegava
atrasado ou em cima da hora. Gostava de ver as propagandas, o noticiário e
principalmente o Canal 100, a
parte esportiva. As imagens de futebol mostradas ali, só foram igualadas muito
recentemente pelas televisões. Eram espetaculares. Mas havia algo que me
incomodava.
Quando mostravam a torcida, as
lentes focalizavam a geral do Maracanã , os tipos “pitorescos”. Gente pobre que
provocava risos na platéia. Não que fizessem nada de especial ou fora dos
padrões de torcedor. Apenas eram pobres, lhes faltavam dentes, alguns traziam a
camisa do clube de sua paixão, já rasgada, desbotada. E a platéia de classe
média via nisso, não sei que graça. Eu sempre pensava que um daqueles caras
poderia estar ali, na sala de projeção próximo a mim. E senão ele, o filho, a
mãe, a mulher que o amasse. As lentes e a platéia não pensavam assim. Para eles
não eram pessoas com famílias, sentimentos, amores, apenas coisas que
provocavam risos. Hoje tudo mudou. Pra pior.
Outro dia no facebook alguém
postou umas fotos que eram encimadas pelos dizeres:_ “Não dê uma câmara digital
a um pobre”. Embaixo, as fotos. Numa delas umas crianças numa piscina de
plástico traziam aquele sorriso que só pode vir do imenso desfrute, da alegria
de estar passando um bom momento com os irmãos ou primos ou vizinhos. O entorno
é pobre e as crianças são negras. Numa outra foto está uma mulher, também
negra. Tem os seios nus resguardados pelas mãos e é muito gostosa. Vê-se ao
fundo uma habitação pobre. É difícil imaginar que quem fez a estúpida anedota
não goste de mulheres ou crianças. Mas fica claro que não gosta de pobres.
Mesmo que sejam crianças, ainda que seja uma mulher, sob todos os aspectos,
desejável. Na postagem seguinte, o mesmo idiota se solidariza com os moradores
expulsos do Pinheirinho.
Muitas outras postagens têm o
mesmo sentido e a palavra pobre vem sempre seguida de uma afirmação torpe, o
preconceito explícito querendo ser humor. Condições sub-humanas de existência
não causam revolta, viram piada. Pessoas que, apesar de tudo, conseguem ver a
beleza e alegria na vida, causam ainda maior desprezo. Mas há coisas que
provocam mais desprazer em quem vive acomodado nas classes médias da
população.É quando o pobre fica rico. Ver um menino pobre e talentoso ganhar em
um mês o que alguns “doutores” levam anos para ganhar, provoca indignação e os
jogadores de futebol são o alvo preferido desses “indignados”. E isso não é de
hoje.
Numa de suas transferências de
clube, Leônidas da Silva, o Diamante Negro, tinha explicitado em seu contrato
que receberia de “luvas” alguns ternos. Até o tecido da confecção estava
estipulado. Leônidas era famoso pelo gosto de boas roupas e por comer mulheres
brancas. Jamais foi perdoado.
Didi, o maior jogador de seu
tempo até o surgimento de Pelé, tinha seu nome escrito nos jornais com os ii
substituídos por cifrões. Isto porque ganhava mais que o presidente da
república. Se no domingo o jogo não fosse favorável ao craque alvinegro, na
segunda-feira o assunto do salário vinha à tona. Mas o “Príncipe Etíope” não
dava muitas chances para que isso acontecesse.
Poucos dias antes da morte de
Dener, houve uma convocação para a seleção brasileira. O craque da Lusa ficara
de fora. Dener era um pouco demais para a cabeça de Parreira. Chateado com a
ausência do jogador, eu escutava o noticiário esportivo de uma rádio paulista
quando um de seus comentaristas de sobrenome italiano, justificou a decisão do
técnico da seleção dizendo que nada se podia esperar de um cara que compra um
carro importado com o primeiro dinheiro que ganha. Desculpe a grosseria, mas a
pergunta sai da gente:_ O que o cu tem a ver com as calças? Sou capaz de
apostar que o ítalo-comentarista vivia encalacrado pagando a cota da viajem à
Europa ou prestação do apartamento pretensioso e acima de seu orçamento.
Uma das vítimas preferenciais do
preconceito foi Romário. Foi e é. Nos tempos de jogador ele era visto como um
indisciplinado porque não gostava de treinar. Poucos gostam. Romário era
atacado por dizê-lo. Durante toda a eliminatória que nos levaria ao mundial dos
Estados Unidos, ele ficou de fora, só sendo convocado para a última partida
decisiva contra os uruguaios. Deixou dois gols memoráveis. Na copa fez o diabo.
Antes de embarcar para a conquista de nosso quarto título, fez uma brincadeira
dizendo que queria viajar na janelinha do avião. Bastou. Mal humorados e chatos
em geral acharam na brincadeira motivos para toda espécie de críticas. O
prestigiado comentarista catarinense Roberto Alves disse que em seu time ele
não jogaria. Outro jornalista, Mino Carta, ao se referir ao jogador sublinhou
sua “arrogância”. Lembro-me bem que ao pronunciar a palavra tinha um esgar de
nojo, desprezo.
Hoje, deputado federal finalista
do Prêmio Congresso em Foco por sua atuação parlamentar, o Baixinho continua
despertando a bronca dos “bem nascidos” e dos que pretendem sê-lo. Claro que o
meio usado para insultar o craque é o facebook. Uma charge postada aí, mostra
três personagens da política nacional. Malluf, Tiririca e Romário. Todos levam
cartazes nas mãos. O de Malluf fala de impunidade, o de Tiririca evoca seu
analfabetismo e o de Romário faz menção a oportunismo.
Talvez seja mais fácil esconder
o amor ou o ódio que a inveja. João Saldanha, intransigente defensor do jogador
de futebol, algumas vezes falou em suas crônicas desse sentimento que seus
“coleguinhas” cultivavam com relação aos boleiros. Hoje, que a internet permite
que qualquer um exponha seu pensamento, o preconceito e a inveja podem se
alastrar com mais facilidade encontrando vazão e eco. O anonimato ajuda. Quando
é necessário pôr a cara, há o recurso do humor fajuto ou do moralismo indignado.
A bola da vez é Neymar. Só esta
semana vi duas postagens nas redes sociais sobre o jogador. Numa delas aparece
um quadro comparativo com fotos de um policial, um professor e do craque. O
tema é o salário que cada um recebe e sua função social. Do primeiro se diz que
ganha R$ !600 para garantir nossa segurança, do segundo que recebe, para
ensinar nossos filhos, R$ 800 e quanto a Neymar, R$ 1.500.000 para chutar uma
bola. Só esquecem de dizer que Neymar não recebe dinheiro público. Quem paga
seu salário, o faz não por amor ao Santos ou ao futebol e sim para lucrar com o
talento do jogador. Quando Michael Jordan era o atleta mais bem pago do mundo
entre os que praticavam esportes coletivos, o jogador pediu um reajuste de
contrato pois seus contadores e advogados concluíram que ele não ficava com
mais de 5% das receitas geradas em torno de seu nome.
No facebook uma outra postagem
chama a atenção. Nesta, a foto do jogador aparece ao lado de uma lhama com a
frase:_ “Separados por um zoológico”. Creio que foi tirado do blog humorístico
kibeloco. E aí não é só a inveja pelos altos rendimentos de Neymar, é bem pior.
Nesse quadro do kibeloco, geralmente os “separados por” são pessoas bem
diferentes que tem alguma semelhança física. Também já vi nesse quadro do blog,
personagens de desenho animado ou estória em quadrinhos ao lado de pessoas
reais, mas a comparação com um animal, é a primeira que vejo. Coisificando,
animalizando, degrada-se, humilha-se.
Mas porque se quer humilhar
Neymar? Simplesmente porque de pobre passou a rico. Porque não é branquinho e
não tem bochechas rosadas. Porque seu cabelo não é igual ao cabelo dos
bonequinhos do play mobil e dos jornalistas esportivos de televisão. Porque,
sem ser bonito, faz sucesso entre as adolescentes e pega geral. E o que faz o
garoto para merecer tanta animosidade? Faz gols, golaços e ganha muita, muita
grana. E mais; irá morar na Espanha ou na Inglaterra na hora que quiser. O
sonho de consumo da classe média está a seu alcance. Há que indignar-se.
Nenhum comentário:
Postar um comentário