domingo, 19 de fevereiro de 2012

O armazém do Waldemar







Fui conhecer supermercados em 1967, tinha quase 10 anos e isso aconteceu no Rio. Em Belo Horizonte não os havia, pelo menos não no meu bairro. Fazíamos nossas compras no armazém do Waldemar. Mais próximo de nossa casa, na Rua dos Andes, tinha uma venda na esquina da Rua Oeste onde também comprávamos, mas só o que era de mais urgência e principalmente quando era eu quem fazia os mandados.
Um dia minha mãe passava em frente à venda naquelas horas mortas da tarde, levava pela mão minha irmã pequena. O vendeiro, decerto, sem saber o que fazer de seu ócio, teve a idéia de pôr fogo em uma caneta esferográfica usada e arremessa-la porta fora. O plástico incandescente veio dar na perna de minha irmã. Desse dia em diante passamos a comprar exclusivamente no armazém do Waldemar.
 Waldemar tinha dois irmãos que com ele trabalhavam o armazém. Um deles tinha uma pequena deficiência mental e era quem conduzia a carroça das entregas. Quando meu pai deixava o dinheiro para acertarmos as contas miúdas da caderneta no fim do mês, fazíamos a compra grande e o carroceiro vinha entregá-la. Algumas vezes minha mãe permitia que eu fosse na carroça acompanhando o homem até a última entrega. Alem dos passeios, devo a esse carroceiro meu amor pelo Galo pois foi ele quem me influenciou na escolha do time. Era atleticano fanático e o time de Lourdes, seu quase que único assunto. Meu pai era carioca e pouco afeito às coisas da bola. Meu Tio Alberto era americano. Os anos 60 foram os anos do Cruzeiro, em meu entorno a única boa influência veio desse homem que conduzia a carroça do armazém do irmão.
O armazém era uma dessas belezas que só podem existir na infância. A frente toda aberta à rua com suas portas de enrolar. Nas três paredes, atrás do balcões, altíssimas estantes de onde os caixeiros faziam cair com o auxílio de uma vara comprida, as latas de gordura de coco Carioca, de fiambrada Swift, de cera Parquetina. As latas despencavam de enorme altura e vinham parar nas mãos hábeis dos vendeiros. Em uma das extremidades do escuro balcão havia grandes fôrmas de queijo parmesão e outras, menores, de queijo de Minas curado. Não longe daí, as cordas de fumo de rolo, negras e marrons. Umas tão grossas quanto o braço de um menino, outras finas,da grossura de um dedo de homem. Mais adiante as lingüiças com seu cheiro doce, toucinho defumado, .bacalhaus brilhantes de sal e pardas mantas de carne seca.
Ao pé dos balcões laterais e dividindo em dois o armazém, estavam os cochos com o feijão roxinho, o arroz de primeira e o de segunda, o milho, o fubá, a farinha de mandioca, o alpiste, o açúcar cristal, o polvilho doce e o amargo, o sal grosso e o refinado. Para nós, meninos, o bom era enfiar a mão nos cochos e sentir a aspereza do milho, o ranger do feijão, a delicadeza encerada do alpiste. A um pedido vinha o caixeiro com o saquinho de papel pardo, abria-o com um movimento de mão e o sustinha pela base para que recebesse os grãos ou os farináceos da concha cônica com alça e grande bico arredondado. Sempre se dirigia para a balança com o saquinho numa das mãos e a concha na outra para completar o peso pedido. Na maioria das vezes nem era preciso e a embalagem era fechada como se fosse embrulho de presente.
Vendia-se sabão Português e tamancos, creolina e Neocid, sabonete Cinta Azul e bolas de borracha. Sabão em pó, Omo e Rinso, anil em pedra. Comprava-se ao gosto e na medida de cada um. Meio quilo de arroz, três ovos, duzentos e cinqüenta gramas de café moído na hora, uma picada de fumo de rolo, cem gramas de sabão em barra. Tudo na caderneta.
O movimento no armazém era constante mas no sábado multiplicava-se pondo no lugar um ar de feira, repleto de saudações de boa vizinhança. Waldemar e os seus iam e vinham atendendo a todos. Eles também, vizinhos do bairro. Não me lembro de placa ou tabuleta que indicasse o nome do negócio. Não era preciso. Todos conheciam o armazém e seu dono conhecia a todos.
Alem do saquinho de papel para os produtos vendidos a granel, do jornal que envolvia os ovos e do papel acinzentado e poroso para os salgados, Waldemar não oferecia outra embalagem. Era o costume. Todos os fregueses levavam suas sacolas de lona listrada para as compras do dia-a-dia. Compras grandes o carroceiro entregava.
 Hoje, compramos em supermercados e eles não vendem meio quilo de açúcar ou arroz, tudo está ensacado segundo as comodidades da indústria e do comércio. Quando precisamos de uma pilha, levamos quatro. Se quisermos o toucinho para o feijão de hoje teremos que comprar para toda a semana. Três ovos, nem pensar. Um número sem fim de marcas, nos deixa atônitos diante das prateleiras. E o que era uma das comodidades desses estabelecimentos está prestes a desaparecer diante da neurose coletiva incentivada pelos próprios supermercados e alguns jornalistas ecológicos; são as sacolinhas plásticas.
 Em várias cidades brasileiras leis foram feitas para bani-las. A legislação paulista fala de proibição aos supermercados de fornecê-las de graça. Parece piada, proibir alguém de fazer algo que esse alguém só faz por imposição legal. Os ambientalistas exigem que levemos nossas bolsas de lona listrada embaixo do braço. Querem resolver os problemas de hoje com soluções do passado. Os tempos são outros e também é outra nossa vida. Hoje as mulheres fazem compras depois do trabalho, quando descem do ônibus ou antes de embarcar nele. Compra-se com o dinheiro na mão. A caderneta do armazém do Waldemar já não vige.  
Enquanto as grandes redes de supermercados economizam milhões não embalando o que compramos, ninguém fala da enorme quantidade de embalagens plásticas que se usa para condicionar nosso consumo. Claro, nenhum supermercado quer pagar funcionários para que nos pesem o feijão e o fubá. Não querem nos vender na medida de nossa necessidade nem querem que afundemos as mãos no cocho de alpiste. Se for para voltar ao armazém do Waldemar que façam entregar minhas compras por aquele carroceiro para que possamos falar daquele drible do Buião, daquele gol do Buglê.









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