Poucos dias antes do natal eu me
mudei para o Rio pela terceira vez. Na infância já morara na Cidade Maravilhosa
mas as crianças estão sempre sujeitas às vontades dos adultos e depois de três
anos eu estava de volta a Belo Horizonte. Mais tarde, na adolescência, passei
um ano de total ociosidade no subúrbio de Todos os Santos, entre o Méier e o
Engenho de Dentro. Mas havia sido uma fuga de minha ociosidade mineira e voltei
pra minha terra como havia partido. De fininho. Desta vez era definitivo,
pensavam meus 19 anos.
Fui morar na casa de minha tia
Lourdinha, em Benfica, no conjunto dos ex-combatentes. Os blocos de
apartamentos ficavam de frente para a Avenida Suburbana cercado pelos outros três
lados pela favela da Maloca. Esta favela era uma extensão da Barreira do Vasco,
a extremidade que mais adentrava o subúrbio. Muitas das famílias que moravam aí
não eram parentes dos pracinhas da FEB e sim vítimas de outra tragédia.
Desalojados da favela de Manguinhos por um incêndio, essas pessoas, em meio ao desespero,
invadiram o conjunto residencial que fora construído para abrigar nossos heróis
da segunda guerra. Com o passar do tempo sua situação foi regularizada ou algo
próximo a isso. Eram 10 ou 12 blocos de 4 andares. Não me lembro quantos
apartamentos havia em cada andar. Não eram muitos.
Um dos blocos ainda trazia em
sua parede externa, buracos de balas do exército que fora ali, capturar
“elementos subversivos” durante a ditadura militar. Em outras paredes, pequenos
arbustos afloravam no terceiro, quarto andar. Não havia muita conservação. O
ambiente era alegre como costumam ser os lugares pobres do Rio.
Atrás dos muros do conjunto
habitacional estava a favela onde eu ia à noite com meu tio jogar sinuca e
tomar um samba ou uma batida de limão. De dia eu contornava pela Avenida e ia
buscar um bagulho que era vendido em uma birosca que pertencia ao dono do
pedaço. Trouxinhas, petecas e papéis ficavam dentro de um baleiro de vidro como
se fossem balas e caramelos. O bagulho era bom, barato e farto. Em pouco tempo
me dei conta que não era necessário sair do conjunto e entrar na favela,
bastava pular o muro. Havia uns garotos que representavam os interesses do dono
da boca, e também vendiam a erva em outros pontos da comunidade. Estavam sempre
soltando pipa e dentro das latinhas em que enrolavam a linha cheia de cerol,
guardavam a mercadoria..
Duas dessas puladas de muro me
provocaram problemas. Uma vez caí em cima do moleque que se abrigara do sol
forte junto ao muro. O cara tomou um tremendo susto mas para minha sorte naquela época nem todo mundo que lidava com o tráfico andava armado. Depois de ter sido
xingado de tudo, comprei a trouxinha e pulei de volta. Na outra foi pior.
Eu tinha meu estilo de pular
muros. De um salto me jogava com a barriga sobre muro, a mão direita alcançava
o outro lado e as pernas iam para o ar. Por um momento eu ficava de cabeça para
baixo e caía em pé. Meu
1,84 de altura e os 60 quilos de puro osso me ajudavam. O salto tinha um
defeito; durante a execução eu ficava com a cara contra o muro e não via o que
se passava do lado em que ia cair. Nesse dia de que falo, tão logo toquei o
chão e virei para o lado certo, vi há uns 20 metros de mim, uzomi dando
um bote gigantesco e encostando a rapaziada. Essa parte da favela era
descampada e sem construções, o campinho de futebol.Eu era um alvo fácil. Assim
como caí alcei vôo de volta. Fui atleta olímpico por uns segundos mas o coração
ficou na boca. Naquele dia só fumei Continental.
Aquele dezembro foi quente ao
ponto de não se encontrar cerveja. Todo dia eu ia à praia. Dois ônibus levavam
a zona sul. O 472, Triagem-Leme e o 473, Triagem-Leme via Rebouças. Embora o
segundo fosse mais rápido e me deixasse mais próximo de Ipanema, logo descobri
que o melhor era tomar o outro que me deixava no Leme. Acontece que o 473 era o
preferido dos praieiros e a rapaziada zoava demais. O motorista não suportava e
parava na delegacia de São Cristóvão. Os canas mandavam descer todo mundo e
revistavam até dentro da sunga. Muitos ficavam por ali mesmo.
Num desses dias depois da praia
e da chuvarada, eu fui até à Maloca buscar um bagulho. Ainda não tinha aderido
ao salto do muro. Depois, banho tomado e cabeça feita, fui para fora do
apartamento térreo onde morava. Havia aí um banquinho de cimento que dava para
o pátio comum. Era um fim de tarde que minha juventude chamou de lindo e meus
muitos anos jamais contestaram. Foi nesse dia que a vi.
Na verdade antes de vê-la, a
ouvi. Ela cantava um samba da Alcione. Cantava do jeito que só nossas mulheres
cantam nos seus quintais de subúrbio, nos morros. Cantava, não a plenos
pulmões, mas a plena garganta. Cantava enquanto lavava a roupa no quarto andar
do bloco de apartamentos que dava de fundos para onde eu estava. Levantei a
cabeça e a vi. Era loura, uma loura carioca com sua pele muito bronzeada, seus
cabelos curtos mais claros aqui e ali pela ação do sol. Cantava e me olhava às
vezes, de soslaio. Depois pendurou a roupa recém lavada no secador que pendia da
minúscula área de serviço e foi pra dentro. Cantando.
Naquela mesma noite soube,
através de uns amigos, o seu nome. Não fui tão discreto como supunha poder ser
e junto com o nome da garota veio o aviso que ela tinha um irmão bravo. Poucos
dias depois, no ano novo, ficamos juntos. Aquelas horas que inauguravam 1977 foram
como um presente de boas vindas à cidade, ao ano, à vida que me sorria. Não
chegamos a ver o sol raiar e nos dias seguintes ela me ignorou rotundamente.
Hoje já não lembro seu nome.
Minhas mãos esqueceram seus seios e seu rosto vai se desvanecendo na
memória. Mas ainda a ouço cantar.
Não seria possível descrever melhor nenhuma dessas coisas. Beleza!
ResponderExcluirNenhuma mulher é tão presente quanto a que insiste em ficar num desvão da memória, quase irreconhecida, quase apagada, quase uma faísca, mas irredutível.
Memoria ensolarada pelo panorama sonoro nitido e vibrante. So voce Aurelio , para transmitir con tanta intensidade vivencias que se apoderan de outras existencias... Obrigado
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