sexta-feira, 23 de março de 2012

Cony e os formadores de opinião

  




Outro dia tive de ir a Florianópolis para buscar um documento. Levava pouco dinheiro, ou melhor, dinheiro nenhum, assim que não pude desfrutar da bela capital dos catarinenses. A ilha é desses lugares onde qualquer ida e vinda, é um passeio. Lá, fiz muitas vezes o que mais gosto: andar a esmo, parar num botequim qualquer num sítio desconhecido e ficar vendo as modas, escutando as conversas. Mesmo no centro da cidade me divirto com o burburinho que me faz falta depois de tantos anos vivendo em cidade pequena.
Desta vez não deu. Desci do ônibus na rodoviária, cruzei a passarela, percorri a rua feia e suja até atingir o mercado público que para mim é como um portal da cidade e determina seu caráter, seu jeito. Cheguei à Praça Deodoro e cruzei-a sob sua velha figueira. Do outro lado da praça tomei uma rua que, embora central, ostenta um ar de bairro com seu escasso comércio e pouco movimento de carros. Sem ter nada de especial, é agradável, acolhedora como toda a cidade. Dois quarteirões adentro encontrei a agência do Ministério de Trabalho que era meu destino. Estive aí por uns minutos e por caminho um pouco diverso retornei a estação de ônibus. Não senti lástima por não ter podido passear por Floripa. Fora e voltaria em boa companhia, levava comigo um livro de Carlos Heitor Cony.
“Um romance sem palavras” não é nem de longe seu melhor livro, mas a prosa solta, despretensiosa e envolvente é do Cony de sempre. Havia lido a metade na ida até a capital torcendo por um engarrafamento que adiasse a chegada do ônibus mas o trânsito era de uma tediosa normalidade, chegamos na hora.  A segunda parte do livro ficou para volta.
Tardiamente tomei contato com a obra desse autor que hoje leio com deleite. Foi no final dos 70. Num carnaval, conheci Valéria na Av. Rio Branco e horas depois estávamos na sua cama. No dia seguinte, indo para a cozinha, me surpreendi com um sujeito nu que cruzava a sala com o mesmo propósito. Era João, o cara que dividia o apartamento com minha namorada. Começamos aí uma amizade que dura até hoje com seus poucos percalços. Nos encontramos conterrâneos e próximos. Já nos primeiros papos ele me perguntou o que eu achava do Cony. Querendo impressionar, a resposta me saiu pronta: _Conyvente.
Quando somos jovens é assim, falamos barbaridades de quem jamais conhecemos, comentamos livros que nunca lemos e muitas vezes amamos o que não compreendemos. Talvez esta, seja a atenuante das tolices da juventude, nós amamos. Amamos e odiamos com grande paixão.
Eu me referira assim ao escritor não por pensar daquela maneira, estava apenas repetindo o que lia no Pasquim que sempre grafava seu nome fazendo o trocadilho infame. (Você me dirá:_Mas existe algum trocadilho que não seja infame?) Acontece que quando comecei a ler esse jornal, Carlos Heitor Cony já havia sido preso seis vezes pela ditadura com a qual seria conivente segundo o hebdomadário. Na primeira prisão ele fora enquadrado na lei de segurança nacional por ter chamado o Gal. Costa e Silva de imbecil numa de suas crônicas publicadas logo após o golpe civil-militar de 64. Costa e Silva que viria a substituir Castelo Branco na chefia do governo de fato, poucos anos depois, era um imbecil. Imbecil e vaidoso. Já nos estertores da ditadura, outro general, Mourão Filho, que fora preterido pelos companheiros de golpe durante todo o período de força, embora tenha sido o primeiro a movimentar as tropas que comandava em Minas rumo ao Rio, concedeu entrevista na qual qualificou Costa e Silva como portador de uma burrice sesquipedal. O ditador já havia desencarnado há muito tempo e Mourão não foi processado por insuflar o ódio entre civis e militares.
Mas quando a ditadura ainda cheirava a tinta, Cony, através de seu advogado, conseguiu descaracterizar o “crime” e foi julgado pela lei de imprensa sendo condenado a um ano de prisão. Cumpriu metade da sentença e foi solto por bom comportamento. Se fosse enquadrado na lei ditatorial, poderia pegar até 30 anos de prisão. Na época eu não sabia disso mas os caras do Pasquim sabiam. Quem também não sabia desses fatos era o João que simplesmente me emprestou um livro de Cony e depois outro e outro. Fiquei fã de carteirinha do grande escritor carioca a despeito do preconceito que eu deixara entrar em mim, por quem me era desconhecido.
Com o passar dos anos fiquei sabendo alguma coisa sobre Cony através de entrevistas deliciosas que ele às vezes concede. Soube, por exemplo, que ele apoiara o golpe de 64 mas após os primeiros atos do governo golpista, se arrependeu e passou a criticá-lo veementemente. Até então, era um cronista de amenidades e talvez por isso sua postura de opositor ao regime tenha causado mal estar entre os militares que não esperavam que viesse dele críticas tão ácidas e que eram lidas por gente, supostamente, simpática ao golpe. Mete mais medo o ex-amigo que o inimigo de sempre.
Nos tempos bicudos da ditadura havia muito patrulhamento e não era pra menos, ou se estava de um lado ou se estava de outro mas também havia casos de antipatias pessoais levadas ao extremo. Acho que por aí se explica a diatribe dos pasquinianos com relação a Cony.
Depois de mais de 30 anos de democracia isso não mudou. Os formadores de opinião seguem servindo seus leitores com o mais tacanho juízo sobre aqueles que são seus desafetos ou simplesmente não compartilham de sua visão de mundo. Para se contrapor às campanhas que a grande imprensa engendra a cada dia para desestabilizar o governo, órgãos de notícias afinados com este, não admitem qualquer crítica vinda de quem quer que seja. O sítio “Carta maior”, por exemplo, está se especializando em desacreditar qualquer um que não reze pela sua cartilha. Basta que se critique o governo do P.T  para ser chamado de “esquerda que a direita gosta” ou “udenista”. Mesmo no patético episódio dos atos secretos do senado em que seu presidente José Sarney foi flagrado em gravações exercendo descarado nepotismo, o sítio de Mino Carta apoiou a espúria manobra petista e da base aliada para evitar o afastamento do último coronel em nome da governabilidade. Ou seja, posicionou-se junto a Renan, Collor e Jucá. E ai de quem não concordasse com a visão desses defensores do governo popular. O engraçado é que num único episódio o Ítalo-jornalista contestou o governo: foi no caso Cesare Batisti..
Outro paladino neo-esquerdista é Paulo Henrique Amorim. O fanho que por tanto tempo trabalhou nas organizações Globo, é agora um terrível adversário da emissora dos Marinho. Querendo ser homem de gênio, cunhou a expressão PIG (partido da imprensa golpista) para alcunhar a grande imprensa e caiu nas graças dos puxa-sacos do governo. Contratado pela Record, já o vimos fazendo reportagem de desagravo a Edir Macedo e apoiando os pactos de virgindade de estudantes pentecostais americanos.
Como P.H. Amorim, também Luis Nassif mudou de lado. Deste mesmo lugar onde estou agora escrevendo, o escutei no início do governo FHC defender, desde a tribuna dos Marinho, as privatizações com argumentos tão pueris quanto entusiasmados. Naqueles tempos Nassif estava alinhado com Lílian Fritebife e outros para apoiar o desmantelamento das empresas públicas. Hoje tem seu próprio programa na rede pública de tv.
Nenhum dos neo-esquerdistas explicou aos seus leitores e ouvintes o motivo de sua nova postura. Não houve um ato de contrição nem um simples mea culpa. Pelo contrário, agora vigiam o pensamento alheio para evitar algum desvio ideológico por parte da esquerda histórica. Ninguém escapa de seu patrulhamento.Basta criticar para ser atirado na vala comum da oposição oportunista e sem idéias.
Deve haver muitos eleitores que comparando os governos do P.T com os anteriores, veja uma fundamental diferença em favor dos petistas, no que tange às políticas públicas. O que talvez nem todos vejam é que quem critica este governo não o faz mirando estas políticas e sim o tipo de alianças que foram feitas sem nenhuma base ideológica e que, de uma maneira ou de outra, contribuem para que as conquistas do governo que se quer popular, estejam sempre ameaçadas pelo jogo do toma lá, dá cá. Qualquer medida saneadora tomada pela Presidenta Dilma é tida como ofensa pessoal pelos donos dos partidos que compõem a base de sustentação. Esta semana, isso ficou evidente com a ameaça do PR de abandonar o barco governista caso não seja satisfeito em sua reivindicação de possuir o Ministério dos Transportes que perdeu depois que seu titular, filiado a essa legenda, protagonizou mais um escândalo de corrupção.  .
Mais acostumada às mudanças circunstanciais de discurso, a direita abrigada nos principais meios de comunicação do país, elogia a vaselina lulista para criticar o pouco “jogo de cintura” da Presidenta Dilma com relação à base aliada no congresso. E os neo-esquerdistas que tanto elogiavam o tino político de Lula na manutenção da governabilidade, agora não podem ir contra a Presidenta justo quando ela enfrenta o fisiologismo e a chantagem explícita de seus “aliados”.Com isso o discurso vai ficando confuso pois não se pode elogiar a postura moralizadora de Dilma sem criticar o comportamento leniente de Lula, que não obstante ter legado à sua sucessora um país em pleno desenvolvimento social e econômico, também deixou uma herança de alianças com o que há de pior na vida pública brasileira.


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