quarta-feira, 14 de março de 2012

Passeios

           




Eu tinha uns 10, 11 anos e como toda minha turma, era doido por futebol. No recreio das aulas da Escola Cócio Barcelos, D. Ilka, nossa professora, deixava que alguns de nós permanecêssemos na sala para jogar botão. Éramos quatro, Sérgio Franco Flores, Ricardo eu e um tricolor que embora tenha o rosto gravado na minha memória, não consigo lembrar seu nome. Disputávamos um interminável campeonato que nunca teve um vencedor. O campo de jogo era feito juntando-se quatro carteiras, que nessa época, eram planas e enormes. Nosso torneio, alem das sempre discutidas regras do botão, tinha mais uma que permitia que tocássemos nos jogadores quando esses não transpunham, só com o toque da palheta, as barreiras que a união dos móveis escolares formavam nos dois sentidos do campo. Mas os botões eram só a representação de nossa verdadeira paixão; o futebol.
Vivíamos uma das épocas de ouro do esporte no Brasil. A xenofobia européia mantinha fechados, vários mercados aos craques sul-americanos e não éramos saqueados em mais essa riqueza. Nossa seleção, que nos dias em que se passa essa narrativa encaminhava sua classificação para o mundial do México, era composta apenas por jogadores que aqui atuavam e eram os ídolos de nossos clubes. Futebol na televisão era raro. Acompanhávamos os campeonatos  pelo rádio e pelos jornais que afanávamos das bancas principalmente nas segundas-feiras. Naqueles tempos os jornaleiros penduravam os diários inteiros, e não só a primeira página, na parte externa de seus negócios. Nossa técnica de afano era simples e funcionava sempre. Enquanto um de nós fazia uma tremenda onda para comprar um único pacotinho de figurinha distraindo o dono da banca, um outro ia por trás e de um só puxão se apossava do Jornal dos Sports. Quando o jornal de Mário Filho estava muito próximo à parte aberta da banca, líamos O Globo. O único cuidado era trocar de banca toda semana. 
Domingos a noite todos assistíamos a Grande Resenha Esportiva Facit pela televisão e durante a semana as impressões de João Saldanha, Nelson Rodrigues e José Maria Scassa, eram a base de nossas discussões. Eu, como atleticano, tinha de me conformar com as pequenas notinhas que saíam nos jornais com resultados e escalação dos times de outros estados. Para não ficar sem ter o que discutir eu me inclinava pelo Botafogo que na época tinha o melhor time do Rio com uma linha ofensiva que contava com Gerson, Rogério, Roberto, Jairzinho e Paulo César. Todos da seleção.
Naqueles tempos gozávamos de muita liberdade e nas tardes cariocas andávamos por todo lado, desbravando Copacabana e arredores. Um de meus passeios favoritos era a Lagoa Rodrigo de Freitas. Havia na Rua Gastão Bahiana, se não me falha a memória, um edifício cujo elevador tinha uma saída para o corte do Cantagalo. Tomar esse elevador fazia parte da aventura pois o porteiro estava lá para impedir o acesso a quem não fosse morador do prédio. Havia que esperar o momento oportuno e entrar de fininho pelo corredor que levava ao transporte. A volta, por algum motivo que já não lembro, tinha de ser feita da maneira mais cansativa, subindo por todo o corte do Cantagalo até atingir Copacabana por seu extremo oeste.
Gostava também de cruzar os quatro túneis do bairro. O túnel Novo, mais extenso e ruidoso, o túnel Velho que me parecia sombrio e úmido, o túnel da Rua Toneleros, e o túnel que separa a Barata Ribeiro da Raul Pompéia, muito mal cheiroso e que eu cruzava diariamente, caminho da escola, quando morava na Sá Ferreira e depois na própria Raul Pompéia.
A Francisco Sá me levava até Ipanema, eu gostava da Praça Gal.Osório com seu laguinho com plantas aquáticas. Naqueles dias tinha aprendido sobre a vitória régia e o laguinho da praça era quase um igarapé. Esse passeio eu fazia só. Também era difícil encontrar companhia para o cruzamento de túneis.
As muitas horas passadas nas ruas não preocupavam muito nossas mães.Pelo menos eu pensava assim. Quando o bate-pernas se prolongava em demasia uma explicação genérica: _“tava por aí mesmo” ou uma mentirinha tranqüilizadora:_ “fui na casa do Nick”, aplacavam as broncas antes mesmo do jantar.
Um dia o Sérgio me chamou para vermos um treino do Flamengo. Ele, embora estudasse em Copacabana, morava no Leblon. A estranheza, nesse caso, provém da distância e não do fato de alguém que morava no bairro elegante estudasse na escola pública. Isso era comum. Muitos outros colegas moravam bem. O Márcio vivia de frente pro mar na Avenida Atlântica num prédio de dois apartamentos por andar. Outros eram moradores do Morro do Cantagalo ou do Morro do Pavão. Muitos deviam ser como eu e habitavam os inúmeros apartamentos conjugados que existem no bairro famoso.
Nesse tempo eu nunca tinha dinheiro no bolso a não ser que, pegando carona no ônibus para ir a escola, economizasse o que minha mãe me dava para a passagem. No dia que fui assistir o treino do rubro-negro eu só contava com umas moedinhas, assim que fui andando de Copacabana até o Leblon onde me encontraria com o Sérgio. Daí mais uma caminhada até a Gávea. Apesar de ser  sócio, meu amigo pulou o muro do clube comigo e caímos num cantinho que dava acesso ao campo. Nossa presença parecia não incomodar ninguém e ficamos cada vez mais perto até estar a poucos metros da linha lateral. Murilo passava por nós como um foguete. Doval treinava apartado fazendo corridas em volta do campo e nos chamou para correr com ele. Ficamos lado a lado com o Diabo Louro e quando disparamos, ele voltando-se, correu para o outro lado. Anos depois voltei a encontrar Doval na praia e fui vítima de outra brincadeira sua.
Quando o treino foi interrompido fomos para a arquibancada e encontramos Paulo César. O ponta do Botafogo assistia o treino do rival cercado de crianças e garotas. Na época, isso não era nenhum problema. Não havia os chatos das torcidas organizadas. Fazendo as contas me surpreendo com a idade que ele tinha então: 19 anos. Já era um monstro sagrado.
 Escurecia quando deixamos a Gávea. Sérgio foi para sua casa que ficava distante apenas alguns quarteirões. A mim cabia a caminhada de volta até a Raul Pompéia em Copacabana. Quando já estava em Ipanema, lembrei das moedinhas mas constatei que não alcançavam para um Grapete. Como a água mineral era mais barata, pedi uma no primeiro botequim que encontrei. O português me serviu uma com gás e  experimentei uma das coisas mais asquerosas que já havia bebido. A sede era muita e ainda faltava um bom pedaço até em casa. Tomei quase toda a garrafa do líquido esquisito. Quando cheguei escutei a ladainha de sempre e respondi que “estava por aí mesmo”.
 Me deitei cedo aquele dia, cansado pelo passeio e rindo ainda da brincadeira de Doval. Na minha cabeça, Murilo seguia passando como um foguete

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