segunda-feira, 26 de março de 2012

Salita


 



Gersom tem esse nome por causa do pai. Não que o velho o tenha batizado assim para homenagear o Canhota campeão do mundo. Seria até natural. Sãopaulino, ele vira, quando menino, Gerson de Oliveira Nunes defender as cores de seu clube e também a seleção, da qual fora o maestro. Mas não. Gersom tinha esse nome por que seu pai também se chamava assim. Mas diferentemente do craque seu nome se escrevia com “M” no final. Portanto ele é Gersom com “M” Júnior. Para nós e a família, Gersinho.
Gersinho foi um menino comum e adolescente meio problemático ou seja, adolescente comum. Fez suas bobagens, tomou seus porres, namorou e fumou maconha. Para assombro da família, quando entrou na idade de homem, tomou jeito por linhas tortas. Gersinho ficou religioso. Começou a freqüentar um centro hinduísta e meses depois era só do que falava. Tinha até um mestre espiritual que venerava, ademais de roupas e adornos sagrados que eram postos e despidos com grande solenidade. Virou vegetariano. E era namastê pra todo lado.
Alguns anos atrás, Gersinho, que adotou um nome impronunciável e que não ouso tentar escrever, foi à Bahia para escutar as palestras que um afamado líder hindu, importado da Índia, lá proferiu. Na saída do mosteiro, após escutar a primeira das muitas charlas que o mestre daria, experimentava um certo desconforto pois alem das palavras que já decorara em sânscrito, pouco entendera da conferência que fora dada em inglês com forte sotaque indiano. Mas o desconforto foi logo desfeito por outro adepto com quem conversou à saída do templo. O rapaz, que também não falava inglês, tinha nos lábios aquele sorriso que só os neófitos de seitas orientais têm e embora nada tivesse entendido dos ensinamentos trazidos de tão longe, lhe assegurou que a energia que emanava do mestre era tão poderosa que valia mais que milhões de palavras. Sim, era verdade, Gersinho também se sentia pleno daquela energia. Quase ficou envergonhado por ter, minutos antes, feito as contas de seus gastos com passagem, hospedagem, e “contribuição” para as palestras. Quase, pois seu mestre local já lhe ensinara atos de contrição e auto-humilhação para esses pequenos deslizes do pensamento.
Sentindo toda a energia do mestre anglófono, Gersinho se encaminhou para a parada de ônibus. Lá, protegida por escassa sombra estava uma moça lendo um livro. Ele reconheceu a capa e sorriu para si pela coincidência de levar na bolsa indiana o mesmo livro: uma biografia de Gandhi. Fazendo-se distraído tirou o livro da bolsa e aproximou-se. A moça se deu conta da presença de Gersimho e do livro que ele abrira mostrando a capa. Foi ela quem puxou conversa e graças ao sistema de transporte público tiveram tempo para falar do líder indiano, do colonialismo inglês, da política nacional e da formação geológica de Salvador. Ela também ia pro Garcia assim que embarcaram juntos.Quando baixou do ônibus Gersinho estava apaixonado.
A moça se chamava Salita mas seu nome nada tinha a ver com o idioma castelhano. Seu pai era natural de Salvador e sua mãe de Itaparica. A cidade natal de cada um dos cônjuges era o único motivo de desavença do casal. O amor de D. Catarina pela por sua ilha era tão grande que certa feita chegou a afirmar que a Doriana de Itaparica era melhor que a de Salvador. Seu Cristóvão, sentindo sua honra de soteropolitano ofendida, brigou sério com a mulher mas a paixão que sentiam um pelo outro foi mais forte e veio a reconciliação. Desta, a gravidez e o nascimento da menina. O nome era como um selo no tratado de paz.
Se alguém fosse descrever aquela moça, jamais pensaria em “salita” e sim em varanda, copa, cozinha, área de serviço, lavanderia e amplo quintal com horta e árvores frutíferas. Gersinho fingia não ver as qualidades físicas de Salita.  
Ela o convidou para que fosse à sua casa no dia seguinte, haveria uma festa. Não disse que era festa de santo pois sempre que se referia à fé de sua gente, a olhavam atravessado. Mesmo em Salvador, mesmo na faculdade de direito. Sua mãe era uma afamada yalalorixá. Não referira ao rapaz o motivo e o caráter da festa mas intuía que ele era uma pessoa aberta, não haveria de ter preconceitos religiosos. Gersinho tampouco mencionou sua crença pois, para ele, tal menção seria algo como agrandar-se diante da moça, mostrar-se superior. Seu mestre já falara sobre isso e pedia humildade ao se tratar com pessoas que ainda não estavam no caminho da luz.
No dia seguinte Gersinho, que cultivava o hábito de sempre chegar atrasado onde quer que fosse, corria pelas ruas da velha cidade para ver Salita. Quando enfim encontrou a rua, ainda ensaiava umas frases interessantes para fazer boa figura com a família da moça. Enquanto buscava na rua o número que já havia decorado, ouvia tambores que pararam de tocar justo quando achou a casa que procurava.
Era uma casa baixa, ampla de frente. Na varanda, uma mulher mostrava o torso vestido de branco e adornado de colares de contas. Na cabeça um turbante da mesma cor que fez com que Gersinho a associara a uma vendedora de acarajé. Perguntou por Salita. Com um prodigioso sorriso a mulher do turbante lhe indicou que tomasse por uma passagem lateral que ele percorreu sob vasto caramanchão. Sentiu o perfume de flores que não sabia o nome enquanto via ao fundo uma verdadeira floresta contida por muros. Ao fim do corredor, atrás da casa, havia outra construção mais baixa e aberta para o quintal. Atraído pelo burburinho Gersinho deixou de olhar para o verde profundo do quintal e torcendo a cabeça para a esquerda estancou vendo que vários homens sujeitavam um grande bode pelos cornos e no exato momento que seus olhos se cruzaram com os do animal, uma lâmina fez brotar um jorro de sangue do pescoço do bicho que soltou um berro afogado.
Salita, que o vira chegar, fez menção de ir ao seu encontro. Chegou a dar dois passos mas encontrou em seu rosto um esgar de repulsa que a reteve. Ele não a reconhecera de imediato com seus atavios da tradição. Ao dar-se conta de sua presença, vislumbrou o ocaso de seu sorriso e voltando-lhe as costas saiu apressado pelo corredor que instantes antes cruzara sorvendo o aroma das acácias..

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             Sei bem, minha amiga, que o relato que acabo de fazer não lhe causou graça nenhuma. Um amor que se desfaz mesmo antes de começar e sem Capuletos nem Montecchios  não é coisa que se apresente.. O que aqui foi narrado é apenas um pálido retrato do que a religião vem fazendo há séculos: separar pessoas. Como consolo, posso lhe afirmar, que os dois são ainda jovens e a vida não lhes será mesquinha em afetos.
             Mas no Rio de Janeiro não é o acaso dos encontros nem o fortuito das discrepâncias religiosas que separam. Não. No Rio fez-se uma lei com muitos artigos, parágrafos e alíneas, com o intuito de separar crianças da escola pública segundo as crenças de seus pais. Sim, pois mesmo quem é capaz de perpetrar semelhante aberração legal, sabe que não existem crianças cristãs, islâmicas, budistas ou judaicas e sim crianças filhas de cristãos, islâmicos, budistas ou judaicos.
A prefeitura da cidade pretende dividir as crianças em 7 grupos, para que recebam instrução religiosa.  Um dos grupos está denominado de “religiões orientais”. A lei de iniciativa do executivo local, parece desconhecer fatos básicos que separam, por exemplo, budistas e hinduístas. Seria o mesmo que outro grupo fosse composto por judeus e cristãos. Um oitavo grupo será destinado àqueles que não professem nenhuma religião., e será denominado “educação para valores”.
A escola, que em muitos casos, era o refugio onde as crianças podiam livrar-se da estreiteza das crenças familiares, pretende transformar-se na continuação do ambiente opressor das igrejas e templos. Temas que antes só eram mencionados por elas esporadicamente e em situações muito específicas, serão, agora, o cerne das classes extracurriculares a serem ditadas por professores concursados e aprovados por dirigentes religiosos. Crendices, sofismas e mitos ganham foro de matéria escolar.
Ainda que eu fosse o maior dos ingênuos e acreditasse que semelhante afronta ao estado laico fosse algo advindo da boa fé das autoridades cariocas e não das pressões de fanáticos fundamentalistas pentecostais e católicos carismáticos, ainda assim não poderia deixar de pensar nas conseqüências que a lei absurda trará, tanto nas relações entre os estudantes, como nas relações do estado com esses futuros cidadãos.
No início do século 20, o governo holandês realizou um censo para informar-se sobre as religiões praticadas por seus nacionais. O intuito do governo era dar àqueles que morressem sós, um enterro condizente com seu credo. Anos depois, quando os nazistas invadiram a Holanda os arquivos com os dados sobre religião dos holandeses, serviram para facilitar a perseguição aos judeus e à outras minorias religiosas.


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