terça-feira, 17 de abril de 2012

Duas sentenças







No espaço de poucos dias nossos tribunais superiores nos deram uma amostra de como a sociedade brasileira trata seus membros de acordo com sua classe social, seu nascimento. Mostraram-nos, os senhores juizes, como podem interpretar as leis discriminando, não os fatores do acometimento do crime, mas seus pacientes e seus agentes.
Numa decisão pautada pelo bom senso, o Supremo Tribunal Federal decidiu pelo direito de interrupção da gravidez de fetos anencéfalos. O relatório do Ministro Marco Aurélio pontuou que as decisões de estado não podem ser fruto de entendimentos de cunho religioso e foi seguido por outros 7 ministros. Abrindo a divergência o Ministro Lewandovski disse temer que uma decisão favorável à ADPF (Argüição por Descumprimento de Preceito Fundamental) proposta, abriria as portas para que outros casos de má formação genética, servissem de argumento para a ampliação da legalização do aborto. Citou vários casos em que a medicina dá pouca ou nenhuma esperança de sobrevida aos nascituros. Data venia, o que para o Ministro é motivo de preocupação, talvez seja o que espera parte da sociedade; que as mães possam decidir se querem ou não passar por uma gravidez desse tipo.
Outro voto divergente veio do Ministro Gilmar Mendes que falou em “faniquito anti-religioso”. Na minha modestíssima opinião, o voto do Ministro deve ser encarado pelo ângulo psicológico e não pelo jurídico.
Quem acompanha, ainda que por diletantismo, os trabalhos do STF, já teve oportunidade de ver Sua Excelência ter vários faniquitos. Não creio que o estafante trabalho de julgar os milhares de processos que lhe caem nas mãos, tenha feito o Ministro desenvolver o hábito dos faniquitos. É, penso eu, coisa de seu ser, de seu caráter e sendo assim, creio que muitos já o fizeram notar que mexe e vira ele tem um faniquito.
Talvez desde os tempos de escola ou mesmo antes, seus faniquitos tenham chamado à atenção de familiares e amigos que por isso, o admoestavam.  Assim a palavra, por repetição, entrou-lhe na mente acompanhada pelo sentimento ruim de quem é pego em falta. Num ato subconsciente de projeção, Gilmar Mendes expeliu o termo num momento que lhe pareceu apropriado. Como Sua Excelência, que já publicou obras em português e alemão, não é, nem de longe, um orador preclaro, sua citação saiu fora de contexto, sem pé nem cabeça. Já o vimos outras vezes dando mostras de que a retórica não é o seu forte. Foi assim quando relatou o processo que pôs fim à exigência de diploma para o exercício da profissão de jornalista e lhe ocorreu fazer uma analogia com os cozinheiros e semanas atrás quando julgou um caso de trabalho escravo praticado pelo Deputado João Lira, citou um fato ocorrido com Madre Teresa de Calcutá.
Se o julgamento do Supremo vem colocar um pouco de bom senso em nosso ordenamento jurídico, outra decisão de uma alta corte surpreendeu o país e teve repercussão alem fronteiras.
A 3ª seção do Superior Tribunal de Justiça considerou inocente um réu que era acusado de estupro. Segundo o tribunal, as vítimas, 3 meninas de 12 anos de idade, já seriam prostitutas "há muito tempo" e portanto não poderiam ter sido estupradas. Ora, a lei é clara:_Art. 217 – A  do Código Penal; “Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos. Pena: De 8 a 15 de reclusão”. Mas na interpretação da Ministra Relatora Maria de Assis Moura “não se pode considerar crime fato que não tenha violado, verdadeiramente, o bem jurídico tutelado”. A explicação legal dada pelo Presidente da Comissão de Direito Penal do Instituto dos Advogados de São Paulo, Dr.Renato de Mello Jorge Silveira e a nota divulgada pelo STJ, eu, por pudor, me eximo de transcrever.
Não obstante as discrepâncias dos veredictos, um apontando para a adequação da lei à medicina e seus avanços de diagnóstico e o outro mostrando o mais abjeto preconceito e patriarcalismo, guardam, esses dois julgamentos, estreito parentesco. Se no primeiro citado o Supremo entregou à sociedade um parecer isento do preconceito religioso e voltado para a realidade dos fatos e dos dias, não o faz senão porque o tema atinge toda a esfera social. Todas as classes. A anencefalia não escolhe o berço, não poupa prosápia. É, me desculpe pela colocação, democrática.
Já a prostituição infantil tem por vítimas, exclusivamente, as filhas e filhos da pobreza. Não se pode falar aqui em escolha ou preferência; em índole ou predisposição. Os fatores que levam a esse drama social são produzidos no seio da própria sociedade hipócrita que faz passeatas pela vida no intuito de preservar gestações de anencéfalos. A mesma sociedade que é contra o aborto e a favor da pena de morte. Que se opõe aos estudos com células tronco e pede o rebaixamento da idade penal. Que criminaliza a pobreza.
Longe de se restringir aos veredictos das cortes de justiça, a postura preconceituosa com relação aos pobres e aos dramas que os afligem, e que já não encontra as barreiras do pudor e da compostura, espalha-se pela internet anônima e infensa às críticas. Essa ruidosa parcela da população, principal usuária das redes sociais e que odeia o Brasil e suas mazelas, crê que avança e se moderniza negando dignidade e usurpando direitos. O julgamento do STJ teve de sua parte não a revolta ou a indignação, senão desdém. Em outros casos do mesmo teor não foi diferente.
Custa crer que vivíamos ao lado de tais monstros do preconceito sem  nos darmos conta disso. Pelo menos agora sabemos que lutas devem ser travadas. Quem é o inimigo.

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