No espaço de poucos dias nossos
tribunais superiores nos deram uma amostra de como a sociedade brasileira trata
seus membros de acordo com sua classe social, seu nascimento. Mostraram-nos, os
senhores juizes, como podem interpretar as leis discriminando, não os fatores
do acometimento do crime, mas seus pacientes e seus agentes.
Numa decisão pautada pelo bom
senso, o Supremo Tribunal Federal decidiu pelo direito de interrupção da
gravidez de fetos anencéfalos. O relatório do Ministro Marco Aurélio pontuou
que as decisões de estado não podem ser fruto de entendimentos de cunho religioso
e foi seguido por outros 7 ministros. Abrindo a divergência o Ministro
Lewandovski disse temer que uma decisão favorável à ADPF (Argüição por Descumprimento de Preceito Fundamental) proposta, abriria as
portas para que outros casos de má formação genética, servissem de argumento
para a ampliação da legalização do aborto. Citou vários casos em que a medicina
dá pouca ou nenhuma esperança de sobrevida aos nascituros. Data venia, o que
para o Ministro é motivo de preocupação, talvez seja o que espera parte da
sociedade; que as mães possam decidir se querem ou não passar por uma gravidez
desse tipo.
Outro voto divergente veio do
Ministro Gilmar Mendes que falou em “faniquito anti-religioso”. Na minha
modestíssima opinião, o voto do Ministro deve ser encarado pelo ângulo
psicológico e não pelo jurídico.
Quem acompanha, ainda que por
diletantismo, os trabalhos do STF, já teve oportunidade de ver Sua Excelência
ter vários faniquitos. Não creio que o estafante trabalho de julgar os milhares de
processos que lhe caem nas mãos, tenha feito o Ministro desenvolver o hábito
dos faniquitos. É, penso eu, coisa de seu ser, de seu caráter e sendo assim, creio que muitos já o fizeram notar que mexe e vira ele tem um faniquito.
Talvez desde os tempos de escola
ou mesmo antes, seus faniquitos tenham chamado à atenção de familiares e amigos
que por isso, o admoestavam. Assim a
palavra, por repetição, entrou-lhe na mente acompanhada pelo sentimento ruim
de quem é pego em falta.
Num ato subconsciente de projeção, Gilmar Mendes expeliu o
termo num momento que lhe pareceu apropriado. Como Sua Excelência, que já
publicou obras em português e alemão, não é, nem de longe, um orador preclaro,
sua citação saiu fora de contexto, sem pé nem cabeça. Já o vimos outras vezes dando
mostras de que a retórica não é o seu forte. Foi assim quando relatou o
processo que pôs fim à exigência de diploma para o exercício da profissão de
jornalista e lhe ocorreu fazer uma analogia com os cozinheiros e semanas atrás
quando julgou um caso de trabalho escravo praticado pelo Deputado João Lira,
citou um fato ocorrido com Madre Teresa de Calcutá.
Se o julgamento do Supremo vem
colocar um pouco de bom senso em nosso ordenamento jurídico, outra decisão de
uma alta corte surpreendeu o país e teve repercussão alem fronteiras.
A 3ª seção do Superior Tribunal
de Justiça considerou inocente um réu que era acusado de estupro. Segundo o
tribunal, as vítimas, 3 meninas de 12 anos de idade, já seriam prostitutas "há muito tempo" e
portanto não poderiam ter sido estupradas. Ora, a lei é clara:_Art. 217 – A do Código Penal; “Ter conjunção carnal ou praticar
outro ato libidinoso com menor de 14 anos. Pena: De 8 a 15 de reclusão”. Mas na
interpretação da Ministra Relatora Maria de Assis Moura “não se pode considerar
crime fato que não tenha violado, verdadeiramente, o bem jurídico tutelado”. A
explicação legal dada pelo Presidente da Comissão de Direito Penal do Instituto
dos Advogados de São Paulo, Dr.Renato de Mello Jorge Silveira e a nota
divulgada pelo STJ, eu, por pudor, me eximo de transcrever.
Não obstante as discrepâncias
dos veredictos, um apontando para a adequação da lei à medicina e seus avanços
de diagnóstico e o outro mostrando o mais abjeto preconceito e patriarcalismo, guardam,
esses dois julgamentos, estreito parentesco. Se no primeiro citado o Supremo
entregou à sociedade um parecer isento do preconceito religioso e voltado para
a realidade dos fatos e dos dias, não o faz senão porque o tema atinge toda a esfera
social. Todas as classes. A anencefalia não escolhe o berço, não poupa
prosápia. É, me desculpe pela colocação, democrática.
Já a prostituição infantil tem por
vítimas, exclusivamente, as filhas e filhos da pobreza. Não se pode falar aqui em escolha ou preferência; em índole ou predisposição. Os fatores que levam a
esse drama social são produzidos no seio da própria sociedade hipócrita que faz
passeatas pela vida no intuito de preservar gestações de anencéfalos. A mesma
sociedade que é contra o aborto e a favor da pena de morte. Que se opõe aos
estudos com células tronco e pede o rebaixamento da idade penal. Que
criminaliza a pobreza.
Longe de se restringir aos
veredictos das cortes de justiça, a postura preconceituosa com relação aos
pobres e aos dramas que os afligem, e que já não encontra as barreiras do pudor e da
compostura, espalha-se pela internet anônima e infensa às críticas. Essa ruidosa
parcela da população, principal usuária das redes sociais e que odeia o Brasil
e suas mazelas, crê que avança e se moderniza negando dignidade e usurpando
direitos. O julgamento do STJ teve de sua parte não a revolta ou a indignação, senão desdém. Em outros casos do mesmo teor não foi diferente.
Custa crer que vivíamos ao lado
de tais monstros do preconceito sem nos
darmos conta disso. Pelo menos agora sabemos que lutas devem ser travadas. Quem
é o inimigo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário