sábado, 7 de abril de 2012

Perdeu, perdeu.






            Não sei se a estória é verdadeira mas é verossímil. Li em algum lugar que lá por meados dos 70, Chagas Freitas , o proprietário do jornal “O Dia”, que era então o diário de maior circulação do Rio, foi acordado de madrugada por um telefonema. Do outro lado da linha o Ministro do Exército ou da Defesa, não sei bem, o convocava para ir imediatamente para o Ministério do Exército, naquele edifício vizinho à Central do Brasil no centro do Rio.
Podemos imaginar o que cogitava o dono do diário enquanto se deslocava de seu apartamento na zona sul para o centro. Naqueles tempos bicudos mesmo alguém importante como Chagas Freitas, empresário e líder estadual da oposição consentida, sentia calafrios com um convite vindo de um militar em horas crepusculares.
Já no gabinete do Ministro, o Doutor Chagas foi conduzido pelo militar até a janela que dava para a saída da estação de trens. Mostrando o povo que abandonava o local apressado rumo ao trabalho, o oficial perguntou ao jornalista: _Vê essa gente Doutor Chagas? _Sim, respondeu aquele que viria a ser Governador do Estado do Rio. _Vê o que levam debaixo do braço? Inquiriu o homem de farda. _Sim, um jornal, respondeu o peemedebista que já devia estar imaginando que armadilha lhe preparava o homem do regime._Não Doutor Chagas, retorquiu em verde-oliva, eles levam SEU jornal.
Acontece que o jornal “O Dia”, veículo popular e leitura obrigatória nos trens suburbanos, vinha noticiando os quebra-quebras das composições férreas que eram promovidas pela população devido ao péssimo serviço e aos atrasos constantes. Tinha virado rotina. O jornal, escandaloso e farejador de fatos bombásticos, não economizava nas descrições dos atos de revolta e acabava incentivando outros. A convocação do Doutor Chagas tinha por objetivo “convence-lo” a não mais publicar aqueles fatos.
A revolta espontânea e justificada não podia ser combatida pelo regime militar com seu arsenal costumeiro de prisões, torturas e assassinatos. Não havia incitação de grupos políticos proscritos, nem lideranças, nem planejamento estratégico. Era uma explosão de ódio, pura e simples. Aquele povo não sentia o temor pelo terrorismo de estado que estava dirigido a amedrontar outros setores da população. Não havia informação sobre os atos repressivos..As prisões e torturas só eram conhecidas por quem, de alguma maneira, estava envolvido na luta contra o regime. O destemor cego do povo pobre era algo para ser temido pelos militares no poder.
No seu LTD Landau preto, Doutor Chagas, de volta pro conforto de seu lar, deve ter sorvido os raios de sol daquela manhã carioca com enorme prazer. O jornal mudaria de assunto e ele não mais seria incomodado por um general madrugador. Certamente algum figurão da Rede Ferroviária Federal seria também despertado de seu sono para visitar dependências militares e as coisas voltariam ao normal. Se assim pensou o dono de “O Dia”, acertou. As coisas voltaram ao normal.
Sou capaz de apostar que se um militante da esquerda fosse consultado durante aqueles episódios de quebra-quebra de trens, sua opinião teria um tom crítico. O povo não seguia a cartilha do revolucionário, não estava direcionando sua revolta para a causa maior que era derrubar a ditadura. Não havia ações articuladas nem manifestos à nação. Não havia coordenação.
Se muita coisa mudou no país desde a entrevista do Doutor Chagas com o general, há certos aspectos da vida nacional que continuam os mesmos e outros até pioraram. Refiro-me à visão que as classes médias têm do povo pobre do país. Basta ler os comentários postados nos sítios de informação da internet e nas redes sociais. A parcela da população mais presente nesses meios vive revoltada com a classe pobre, que em sua visão, deveria revoltar-se com a situação da saúde, do ensino público, do transporte. A classe média do país, que se sente uma elite intelectual e guardiã da pureza de costumes, não se conforma em não pautar a vida dos mais pobres e incultos. Como no passado recente, os médio-classistas não entendem as transformações que vão ocorrendo debaixo de seus narizes que cheiram nuvens. .
Não resta dúvida que houve no país uma forte inclusão social nos últimos tempos e que essa nova classe média tem suas prioridades. Querem, enfim, consumir. Em pesquisa recente verificou-se que ao entrar no mundo do consumo, os milhões de brasileiros que agora tem emprego fixo com salário decente, tomam duas atitudes: colocam seus filhos na escola particular e se associam a um plano de saúde. Individualmente tentam resolver as questões que se sempre os afligiu. Imitam as classes que há mais tempo freqüentam a vida digna. Num futuro próximo, mantidas as condições atuais, esses novos consumidores tendem a tornarem-se tão conservadores quanto à classe média tradicional. E também entre seus filhos há de surgir o fenômeno da “classe média radicalizada”. Num tempo que não tarda a vir, os meninos que diferentemente de seus pais, não terão passado pelas agruras da fome e do desemprego, ocuparão os meios eletrônicos para se revoltar contra a fome e o desemprego. Serão solidários atrás de seus computadores. Clamarão contra o povo que não reage e nem freqüenta as passeatas contra a corrupção.
Como os filhotes da classe média de hoje, os que virão, passados alguns anos, também repetirão o bordão da índole pacífica do povo brasileiro, ainda que nem a história nem os fatos confirmem tal pacifismo. Não é porque nas escolas não nos ensinam sobre as revoltas populares havidas desde o tempo da colônia que elas não tenham existido. Se a Globo não mostra as várias invasões de latifúndios pelos sem terra e as ocupações de construções abandonadas pelos sem teto, é porque seguem o raciocínio do general que tocou o clarim no apartamento de Chagas Freitas; não quer dar idéia. A estratégia dá resultado pois mesmo a classe média radicalizada desconhece as lutas do povo que ela enxerga como pacífico e conformista. No instante em que escrevo, há no país uma série de ocupações populares, manifestações de quilombolas, de entidades de favelas e outros focos de resistência popular que não recebe nenhuma cobertura dos meios de comunicação nem são vistos pela maioria dos radicalizados da internet.
Do mesmo ventre que pariu a sociologia de Gilberto Freire, que viu um convívio harmônico entre a casa grande e a senzala, também saiu a teoria da índole pacífica do povo brasileiro. As duas abordagens da nossa realidade, que têm origem no pensamento das classes dominantes, falseiam os fatos para, no caso da primeira, esconder o barbarismo da escravidão e negar o racismo, enquanto na segunda, para forjar uma sociedade que desconheça sua própria história e sua força de reação. Em ambos os casos o resultado é muito animador para seus divulgadores. Se hoje o introdutor da sociologia metodológica no Brasil é citado com reverências e afagos, os ideólogos do pacifismo popular são recompensados pelos seus esforços, pois quem deveria descrer de suas assertivas, as propaga.
A história das lutas aqui travadas que nos ensinam nas escolas e são marcadas por feriados nacionais e regionais, é a história das elites que disputavam o poder. Do Quilombo dos Palmares ou da guerra dos Alfaiates pouco sabemos. Foi esmagando uma revolta popular no Maranhão, “A Balaiada” que Luiz Alves de Lima e Silva se tornou o Barão de Caxias e foi alcunhado “O pacificador”. Daqueles que lutaram contra o Império, só a crônica local dá notícias.
Se os quebra-quebras dos anos 70 contavam com a simpatia crítica da classe média radicalizada daqueles tempos, outro episódio semelhante acontecido no começo do governo Sarney, em Brasília, já não teve a mesma acolhida. A esquerda  que sobreviveu  ao regime militar, apoiava a Nova República crendo que as mesmas elites que tanto contribuíram para o golpe e  apoiaram a ditadura, iriam restituir os direitos e promover a justiça. A depredação e incêndio de ônibus no Distrito Federal em meados dos 80 que foram chamados de “badernaço” pelo então Ministro da Justiça, Paulo Brossard, não contou com o apoio de ninguém, muito menos da classe média que estava se sentindo protagonista no papel de fiscal do Sarney.
Os saques a supermercados ocorridos depois que a inflação chegou à estratosfera pelo fracasso do plano heterodoxo que a equipe econômica de Sarney implementou, também amedrontavam as classes acomodadas que preferiam crer nos noticiários da grande imprensa que mostrava os saqueadores como ladrões oportunistas e para os radicalizados, a imagem de pessoas correndo com caixas de cerveja ou latas de goiabada, não correspondia à sua estética “revolucionária”. Uma semana ou duas depois dos episódios de revoltas espontâneas tudo era ignorado e voltava-se ao chavão da passividade do povo diante dos problemas que o afligia.
Mas é nos dias de hoje que a vontade de não ver a realidade toca as raias do absurdo. Existem nas ruas, morros e favelas do país, exércitos fortemente armados fazendo sua revolução. Não é, de nenhuma maneira, a revolução socialista que sonhamos e que iria trazer festa, trabalho e pão. É uma revolução capitalista. Seus agentes não acreditam na mobilidade social e nem querem esperar que passeatas resolvam seus problemas. Não pregam a igualdade nem a solidariedade universal. A revolução que se vê, visa o acúmulo. Seu objetivo é a ascensão social pela força das armas. Querem fazer a redistribuição de renda. Do bolso de quem tem pro bolso de quem tem coragem de tomar. Suas palavras de ordem são: _Quero minha parte, quero em dinheiro e quero agora.
É difícil pensar que alguém continue acreditando na índole pacífica do povo brasileiro com um 45 encostado na cabeça e um cara falando sinistro: _Perdeu, perdeu.





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