Não sei se a estória é verdadeira mas é verossímil. Li em algum lugar que lá por meados dos 70, Chagas Freitas , o proprietário do jornal “O Dia”, que era então o diário de maior circulação do Rio, foi acordado de madrugada por um telefonema. Do outro lado da linha o Ministro do Exército ou da Defesa, não sei bem, o convocava para ir imediatamente para o Ministério do Exército, naquele edifício vizinho à Central do Brasil no centro do Rio.
Podemos imaginar o que cogitava o dono do diário enquanto se deslocava de seu apartamento na zona sul para o
centro. Naqueles tempos bicudos mesmo alguém importante como Chagas Freitas,
empresário e líder estadual da oposição consentida, sentia calafrios com um
convite vindo de um militar em horas crepusculares.
Já no gabinete do Ministro, o
Doutor Chagas foi conduzido pelo militar até a janela que dava para a saída da
estação de trens. Mostrando o povo que abandonava o local apressado rumo ao
trabalho, o oficial perguntou ao jornalista: _Vê essa gente Doutor Chagas? _Sim,
respondeu aquele que viria a ser Governador do Estado do Rio. _Vê o que levam
debaixo do braço? Inquiriu o homem de farda. _Sim, um jornal, respondeu o
peemedebista que já devia estar imaginando que armadilha lhe preparava o homem
do regime._Não Doutor Chagas, retorquiu em verde-oliva, eles levam SEU jornal.
Acontece que o jornal “O Dia”,
veículo popular e leitura obrigatória nos trens suburbanos, vinha noticiando os
quebra-quebras das composições férreas que eram promovidas pela população
devido ao péssimo serviço e aos atrasos constantes. Tinha virado rotina. O
jornal, escandaloso e farejador de fatos bombásticos, não economizava nas
descrições dos atos de revolta e acabava incentivando outros. A convocação do
Doutor Chagas tinha por objetivo “convence-lo” a não mais publicar aqueles
fatos.
A revolta espontânea e
justificada não podia ser combatida pelo regime militar com seu arsenal
costumeiro de prisões, torturas e assassinatos. Não havia incitação de grupos
políticos proscritos, nem lideranças, nem planejamento estratégico. Era uma
explosão de ódio, pura e simples. Aquele povo não sentia o temor pelo
terrorismo de estado que estava dirigido a amedrontar outros setores da população.
Não havia informação sobre os atos repressivos..As prisões e torturas só eram
conhecidas por quem, de alguma maneira, estava envolvido na luta contra o regime.
O destemor cego do povo pobre era algo para ser temido pelos militares no
poder.
No seu LTD Landau preto, Doutor
Chagas, de volta pro conforto de seu lar, deve ter sorvido os raios de sol
daquela manhã carioca com enorme prazer. O jornal mudaria de assunto e ele não
mais seria incomodado por um general madrugador. Certamente algum figurão da
Rede Ferroviária Federal seria também despertado de seu sono para visitar
dependências militares e as coisas voltariam ao normal. Se assim pensou o dono
de “O Dia”, acertou. As coisas voltaram ao normal.
Sou capaz de apostar que se um militante da esquerda fosse consultado durante aqueles episódios de
quebra-quebra de trens, sua opinião teria um tom crítico. O povo não seguia a
cartilha do revolucionário, não estava direcionando sua revolta para a causa
maior que era derrubar a ditadura. Não havia ações articuladas nem manifestos à
nação. Não havia coordenação.
Se muita coisa mudou no país
desde a entrevista do Doutor Chagas com o general, há certos aspectos da vida
nacional que continuam os mesmos e outros até pioraram. Refiro-me à visão que
as classes médias têm do povo pobre do país. Basta ler os comentários postados
nos sítios de informação da internet e nas redes sociais. A parcela da
população mais presente nesses meios vive revoltada com a classe pobre, que em
sua visão, deveria revoltar-se com a situação da saúde, do ensino público, do
transporte. A classe média do país, que se sente uma elite intelectual e
guardiã da pureza de costumes, não se conforma em não pautar a vida dos mais
pobres e incultos. Como no passado recente, os médio-classistas não entendem as
transformações que vão ocorrendo debaixo de seus narizes que cheiram nuvens. .
Não resta dúvida que houve no
país uma forte inclusão social nos últimos tempos e que essa nova classe média
tem suas prioridades. Querem, enfim, consumir. Em pesquisa recente verificou-se
que ao entrar no mundo do consumo, os milhões de brasileiros que agora tem
emprego fixo com salário decente, tomam duas atitudes: colocam seus filhos na
escola particular e se associam a um plano de saúde. Individualmente tentam
resolver as questões que se sempre os afligiu. Imitam as classes que há mais tempo
freqüentam a vida digna. Num futuro próximo, mantidas as condições atuais,
esses novos consumidores tendem a tornarem-se tão conservadores quanto à classe
média tradicional. E também entre seus filhos há de surgir o fenômeno da
“classe média radicalizada”. Num tempo que não tarda a vir, os meninos que
diferentemente de seus pais, não terão passado pelas agruras da fome e do
desemprego, ocuparão os meios eletrônicos para se revoltar contra a fome e o
desemprego. Serão solidários atrás de seus computadores. Clamarão contra o povo
que não reage e nem freqüenta as passeatas contra a corrupção.
Como os filhotes da classe média
de hoje, os que virão, passados alguns anos, também repetirão o bordão da
índole pacífica do povo brasileiro, ainda que nem a história nem os fatos
confirmem tal pacifismo. Não é porque nas escolas não nos ensinam sobre as
revoltas populares havidas desde o tempo da colônia que elas não tenham
existido. Se a Globo não mostra as várias invasões de latifúndios pelos sem
terra e as ocupações de construções abandonadas pelos sem teto, é porque seguem
o raciocínio do general que tocou o clarim no apartamento de Chagas Freitas;
não quer dar idéia. A estratégia dá resultado pois mesmo a classe média
radicalizada desconhece as lutas do povo que ela enxerga como pacífico e
conformista. No instante em que escrevo, há no país uma série de ocupações
populares, manifestações de quilombolas, de entidades de favelas e outros focos
de resistência popular que não recebe nenhuma cobertura dos meios de comunicação
nem são vistos pela maioria dos radicalizados da internet.
Do mesmo ventre que pariu a
sociologia de Gilberto Freire, que viu um convívio harmônico entre a casa
grande e a senzala, também saiu a teoria da índole pacífica do povo brasileiro.
As duas abordagens da nossa realidade, que têm origem no pensamento das classes
dominantes, falseiam os fatos para, no caso da primeira, esconder o barbarismo
da escravidão e negar o racismo, enquanto na segunda, para forjar uma sociedade
que desconheça sua própria história e sua força de reação. Em ambos os casos o
resultado é muito animador para seus divulgadores. Se hoje o introdutor da
sociologia metodológica no Brasil é citado com reverências e afagos, os
ideólogos do pacifismo popular são recompensados pelos seus esforços, pois quem
deveria descrer de suas assertivas, as propaga.
A história das lutas aqui
travadas que nos ensinam nas escolas e são marcadas por feriados nacionais e
regionais, é a história das elites que disputavam o poder. Do Quilombo dos
Palmares ou da guerra dos Alfaiates pouco sabemos. Foi esmagando uma revolta
popular no Maranhão, “A Balaiada” que Luiz Alves de Lima e Silva se tornou o
Barão de Caxias e foi alcunhado “O pacificador”. Daqueles que lutaram contra o
Império, só a crônica local dá notícias.
Se os quebra-quebras dos anos 70
contavam com a simpatia crítica da classe média radicalizada daqueles tempos,
outro episódio semelhante acontecido no começo do governo Sarney, em Brasília,
já não teve a mesma acolhida. A esquerda que sobreviveu ao regime militar, apoiava a Nova República
crendo que as mesmas elites que tanto contribuíram para o golpe e apoiaram a ditadura, iriam restituir os
direitos e promover a justiça. A depredação e incêndio de ônibus no Distrito
Federal em meados dos 80 que foram chamados de “badernaço” pelo então Ministro
da Justiça, Paulo Brossard, não contou com o apoio de ninguém, muito menos da
classe média que estava se sentindo protagonista no papel de fiscal do Sarney.
Os saques a supermercados
ocorridos depois que a inflação chegou à estratosfera pelo fracasso do plano
heterodoxo que a equipe econômica de Sarney implementou, também amedrontavam as
classes acomodadas que preferiam crer nos noticiários da grande imprensa que
mostrava os saqueadores como ladrões oportunistas e para os radicalizados, a
imagem de pessoas correndo com caixas de cerveja ou latas de goiabada, não
correspondia à sua estética “revolucionária”. Uma semana ou duas depois dos
episódios de revoltas espontâneas tudo era ignorado e voltava-se ao chavão da
passividade do povo diante dos problemas que o afligia.
Mas é nos dias de hoje que a
vontade de não ver a realidade toca as raias do absurdo. Existem nas ruas,
morros e favelas do país, exércitos fortemente armados fazendo sua revolução.
Não é, de nenhuma maneira, a revolução socialista que sonhamos e que iria
trazer festa, trabalho e pão. É uma revolução capitalista. Seus agentes não
acreditam na mobilidade social e nem querem esperar que passeatas resolvam seus
problemas. Não pregam a igualdade nem a solidariedade universal. A revolução
que se vê, visa o acúmulo. Seu objetivo é a ascensão social pela força das
armas. Querem fazer a redistribuição de renda. Do bolso de quem tem pro bolso
de quem tem coragem de tomar. Suas palavras de ordem são: _Quero minha parte, quero
em dinheiro e quero agora.
É difícil pensar que alguém
continue acreditando na índole pacífica do povo brasileiro com um 45 encostado
na cabeça e um cara falando sinistro: _Perdeu, perdeu.
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