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Li uma vez no Pasquim, uma
matéria falando de traduções. O texto, bem humorado e melhor escrito, citava um
dito italiano:_Traduttore, traditore e discorria sobre as traduções mal feitas
e os equívocos provocados pelo descuido dos que exercem essa faina. Mal lembro
dos exemplos mencionados, mas o jogo de palavras, sonoro e categórico, ficou-me
no íntimo.
Talvez pelo despeito de ler
apenas o português e o castelhano, a cada obra traduzida que me cai nas mãos,
eu fico tentando adivinhar as qualidades do tradutor que, pelo geral, não
conheço.
Li “Os trabalhadores do mar” de
Vitor Hugo, numa tradução de Machado de Assis, o que para mim representava uma
chancela, mas quando li “Os miseráveis”, o nome de Carlos dos Santos não me
parecia tão confiável e só depois de envolver-me com as vicissitudes de Jean
Valjean é que pude me livrar da tola desconfiança. Era o dito gracioso que
metia sua verruma nos meus prazeres.
Ainda hoje carrego muito do
aforismo italiano e poesia estrangeira não leio de maneira nenhuma pois me
parece que traduzir poesia é algo impossível. Seria como traduzir suspiros ou
bocejos. Sei que erro, e os exemplos de boas traduções poéticas estão aí para
merecer elogios de quem conhece outros idiomas e pode julgar.
Muita coisa, deixei de ler à
espera de poder fazê-lo no único outro idioma que conheço alem do pátrio. Assim
que sou virgem em Cervantes.
Outras vezes rejeitei obras fundamentais da literatura russa
por encontrá-las traduzidas do inglês e se não fosse o instinto e o hábito de
ler orelhas e contracapas, eu não teria conhecido Kenzaburo Oê que, assim como
Mishima, só é encontrado em traduções de traduções. As informações sobre Oê e
sua obra me fez romper com meus preconceitos e pude assim apreciar a beleza de
sua narrativa. É estranho que com tantos japoneses e seus descendentes vivendo no Brasil, os grandes nomes da literatura nipônica não sejam traduzidos diretamente para o português.
Com Isaac Bashevis Singer foi
tudo diferente. Do que conheço de sua obra, li quase tudo em castelhano. O
engraçado é que ele escrevia em yiddish embora vivesse há décadas nos Estados
Unidos e publicasse naquele país. Participava pessoalmente da tradução para o
inglês mas só escrevia no dialeto de sua gente. Uma vez lhe perguntaram o
motivo disso, e ele respondeu que poderia aparecer algum fantasma judeu da Europa e perguntar:_ O que há de novo pra ler?
Já nos primeiros contos de
Singer que li, fiquei maravilhado com sua escrita. Passei aos romances e novelas e
quando já sentia saudades de seus relatos veio cair em minhas mãos um pequeno
livro de contos editado pela Editotial Bruguera
de Barcelona.
Dezesseis contos compõem o
volume entre eles Yentl, que foi levado ao cinema por Barbra Streisand, em
forma de musical, e ficou devendo. O título do volume era: “Una boda em
Brownsville”. Constatei pelo índice que esse também era o título de um dos
contos. Na ficha do livro, logo acima do nome dos tradutores estava o título
original:”Short Friday”. Voltando ao índice me dei conta que esse era o nome do
último conto, traduzido para “Viernes breve” A edição em castelhano havia
substituído um conto pelo outro para nomear o volume. Me indignei, e desta vez foi com o editor que ousara
corrigir o autor ou seu editor original,
pondo em evidência outro conto que não o escolhido originalmente. Era o que
faltava. Depois dos tradutores, os editores querendo trair o autor.
Na obra de Singer a ação
transcorre tendo por pano de fundo as aldeias judias da Polônia, as cidades
daquele país ou os Estados Unidos. Muitos de seus contos, novelas e romances
tem forte tom autobiográfico. Não é o caso do conto em questão que tem como
protagonista um rico doutor judeu de Nova Iorque que vai cumprir um compromisso
social comparecendo a uma boda em Brownsville. Não vai com satisfação mas por ser
proeminente personagem daquela coletividade.
Nas poucas páginas do conto,
Singer nos dá a falsa impressão de que tudo não passa de mais um dia na vida
daquele homem que, no seu carro, percorre a cidade que nunca dorme em direção a
um de seus recantos. De repente estacamos. Relemos o parágrafo anterior.
Verificamos se não saltamos alguma página. Não. Mas afinal o que se passou? O
que acontece é que estamos mergulhados no mundo de Singer. Ou, pelo menos, em
uma de suas facetas.
Singer, na verdade é um escritor
e, mais que isso, um homem, de vários mundos. Nele convivem o filho de rabino e
o cético. O menino da aldeia polonesa e o homem da metrópole americana. A
descrença no ser humano e a misericórdia de quem lê almas. Quando descreve a
vida de perseguições na pátria emprestada ou o universo dos judeus americanos,
já tão distantes de seus valores, Singer fala de nós, do mais profundo de nós.
Faz o que tem de fazer todo aquele que é um verdadeiro escritor: nos comove.
Uma boda em Brownsville é um
conto, sob todos os aspectos, antológico. Finda sua leitura, sabemos que
estamos diante do grande escritor. Longe de nos dar uma visão ampla do universo
de Singer, a pequena narrativa revela as qualidades do autor que é capaz de nos
ludibriar até levar-nos à revelação. E esta não vem através do que está
escrito, mas do que já sabíamos antes.
A intromissão de seu editor
espanhol fica mais que justificada. O conto merece estar em relevo ainda que
em meio a outras pérolas do escritor.
Por meu turno, meto mais uma vez
a viola no saco. Prometo aos meus botões que vou parar de dar palpites no lavor
de tradutores e editores e ler primeiro para criticar depois.
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