segunda-feira, 14 de maio de 2012

Nava







Era uma época em que uma linha telefônica podia custar a metade de um apartamento. E era preciso declarar no imposto de renda a posse de um número. A imensa maioria da população não tinha telefone e usava os orelhões que se espalhavam pelas ruas das grandes cidades. Os cartões magnéticos ainda não existiam e as fichas telefônicas eram vendidas em bancas de jornais e pelos camelôs. Celulares nem nos filmes de ficção científica. Pra longe, mandava-se carta, pra perto, recado.
Foi num dia quente desses tempos remotos, que eu recebi de minha tia, com quem morava, um recado de minha mãe dizendo que queria falar comigo e que a procurasse no seu trabalho no dia seguinte. Eu vivia a pouco tempo no Rio e minha ocupação era ir à praia, fumar maconha e paquerar, portanto aquela necessidade de ter de fazer algo antes de pisar na areia me chateava. Alem do mais o que queria a velha? Alguma reprimenda, na certa.
No dia seguinte tomei o ônibus para ir a Ipanema pensando no grande drama de ter de baixar antes em Copacabana para saber o que queria D. Neusa. No meio do caminho o dia deu em nublado, como diria o poeta, e eu nunca gostei de praia com nuvens. Sigo assim. Só vou à praia com promessa de sol constante e de rachar mamona.
Desci próximo à Paula Freitas onde minha mãe estava exercendo seu ofício de costureira a domicílio. O apartamento onde trabalhava era de um dos Magalhães Pinto, creio que Eduardo Magalhães Pinto. Desde Belo Horizonte minha mãe trabalhava para eles e agora, que nos mudáramos para o Rio, ela fazia os consertos de cortinas ou algo assim nesse apartamento que a rica família mantinha na cidade. Entrei pela entrada de serviço como competia, não só por ser filho de serviçal como por estar de sunga e sandálias de dedo. Nesse tempo eu só levava à praia minha esbelta pessoa. O dinheiro da passagem era amarrado no cordão da sunga e as moedas ficavam também no calção. A chave de casa eu levava atada ao pescoço como medalhinha de santo. A camiseta, pendurada no ombro,era só para fazer figuração. Toquei a campainha e minha mãe veio abrir-me a porta. Na verdade ela não queria nada de especial e nem sequer perguntou se eu já arranjara algum emprego. Era só para ver-me a cara.
No apartamento estava só minha mãe, os banqueiros estavam em Minas e a arrumadeira saíra. Com a cara de pau característica dos muito jovens, resolvi inspecionar o local. A cozinha e demais dependências de serviço eram maiores do que qualquer lugar onde eu havia morado. Fui adentrando pela copa e salas repletas de móveis. Em cada uma delas, poltronas, divãs e sofás suficientes para mobiliar todos os inúmeros apartamentos conjugados em que eu já vivera. E uma biblioteca. Como as dos filmes. Uma enorme escrivaninha com várias gavetas de diversos tamanhos. Lâmpadas, luminárias e abajures. Altíssimas poltronas de couro e uma parede repleta de livros do teto ao chão. As lombadas dizendo títulos e nomes em dourado. Se a memória já não confundiu esta com outras bibliotecas que vi, havia de tudo ali. Obras completas, coleções, poetas, romancistas, ensaístas, cartografia, história. Maravilhas para anos de leitura.
Sobre a escrivaninha, um volume em encadernação original da editora. Tomei o livro, li a orelha e soube que se tratava de obra de memórias e que o autor era meu conterrâneo. Estava no Rio não fazia nem um mês mas minha mineirice já andava saudosa das montanhas alterosas e da conversa de minha gente, assim que resolvi levar o livro emprestado por umas horas sob os protestos de minha mãe. Mas mãe a gente enrola.
Chegando à praia fiz um travesseiro de areia que cobri com a camiseta e depois de olhar umas bundas comecei a ler. Era o segundo volume das memórias de Pedro Nava: “Balão cativo”. Durante horas estive preso à leitura do que depois eu saberia ser uma das mais brilhantes obras de memorialística em língua portuguesa. Nesse volume Nava narra, entre outras coisas, seu internato no Colégio Pedro II no Rio de Janeiro. Essa passagem pelo educandário carioca e a descrição de suas primeiras impressões do Rio, dos anos 10, é o que mais lembro desse primeiro encontro com o escritor.
Como naquele dia as horas passaram muito rapidamente e o céu prometia uma daquelas chuvaradas de fim de tarde, resolvi ir embora. Passei por Copacabana e devolvi o livro ao lugar de onde o havia retirado. Deve ter ficado um pouquinho de areia no meio das páginas. Nada de mais. Somente anos depois pude retomar a leitura graças a um dos maiores inventos da humanidade: a biblioteca pública.
          Apesar de ter lançado seu primeiro volume de memórias em 72, foi em 76 que tomei contato com Pedro Nava. Em 78 “Baú de ossos” já estava na 5ª edição, “Balão cativo” na 3ª e “Chão de ferro na 2ª. Nesse ano foi lançado “Beira mar” que foi seguido de “Galo-das-trevas” de 81 e “O círio perfeito” de 83.
 Além dos elogios unânimes da crítica, Pedro Nava, com suas memórias, também colecionou desafetos. Alguns familiares não gostaram da maneira como foram retratados seus antepassados e médicos se molestaram pelas opiniões que Nava tinha sobre a profissão que exerceu com brilhantismo. Num dos volumes das memórias ele advoga que médicos deveriam pertencer às classes médias da população. Não compactuava com o mercantilismo da medicina.
Já estava “íntimo” do autor quando um dia, voltando da casa de um amigo que vivia na Glória , parei no “Amarelinho” para um chopinho. Como o dinheiro só dava para um único chope, não busquei mesa e fui direto ao balcão. Lá estava Pedro Nava tomando o que parecia ser um uísque. Não resisti e disse-lhe:_ Boa noite Dr.Pedro. Ele sorriu com os olhos e acenou levemente a cabeça. Entendi que aquele sorriso significava:_Olha, eu fui simpático com você mas não me encha o saco. Não enchi. Juro. Apenas demorei um pouco mais em beber o chope. _Quem sabe se ele não puxava uma conversa? Não puxou.
Hoje, tenho em meu poder apenas o quinto e o sexto volumes da obra magistral e na lembrança as horas de puro prazer que tive enquanto a lia.
Quando morreu Pedro Nava eu estava na Argentina. Na volta, soube da triste notícia. Tive, acima de tudo, um sentimento de frustração por não poder mais acompanhar, através de seus relatos, sua trajetória pela vida, longa e rica. Depois fui morar na Lapa e tinha minha barraca de camelô em frente ao relógio da Glória. Toda vez que o olhava, me lembrava da foto que adorna a contracapa de “Galo das trevas”, o quinto volume de suas memórias, na edição da “José Olímpio”.
Outro dia, vi a chamada de um programa sobre literatura que passa na TV pública e entre as obras que seriam comentadas, estavam as memórias de Pedro Nava. Pelas capas, vi que se tratava de nova edição e me veio a certeza que estes volumes terão uma edição para cada geração que certamente irá se maravilhar não só com a beleza do texto, mas com a profunda carga humana neles contida. Ademais de mestre na língua portuguesa, Nava é um cultor da verdade, histórica e íntima. 
Da obra de Nava disse Raquel de Queirós que “é livro para mexer com a alma, o coração e a inteligência, com as vísceras nobres do peito e as circunvoluções da cabeça”.Portanto, se você ainda não leu Pedro Nava, aproveite a nova edição para conhecer o que há de melhor na memorialística em língua portuguesa.
Não posso terminar sem citar uns versos que Olavo Drummond dedicou a Nava num poema intitulado “Canção a Pedro Nava” que abre o “Galo-das-trevas” e começa dizendo:

                            Pedro Nava
                            Doutor Pedro
                            Dos tempos bons das Gerais
                            Pedrinho de Juiz de Fora
                            Por que somente agora
                            Franqueaste os teus bornais?



E termina:


                                     Obrigado, Pedro Nava,
                                     Em nome de tudo mais
                                     Das virgens belorizontinas
                                     Das Deusas belorizontais!...

                            


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