Era uma época
em que uma linha telefônica podia custar a metade de um apartamento. E era
preciso declarar no imposto de renda a posse de um número. A imensa maioria da população não tinha
telefone e usava os orelhões que se espalhavam pelas ruas das grandes cidades.
Os cartões magnéticos ainda não existiam e as fichas telefônicas eram vendidas
em bancas de jornais e pelos camelôs. Celulares nem nos filmes de ficção
científica. Pra longe, mandava-se carta, pra perto, recado.
Foi num dia
quente desses tempos remotos, que eu recebi de minha tia, com quem morava, um
recado de minha mãe dizendo que queria falar comigo e que a procurasse no seu
trabalho no dia seguinte. Eu vivia a pouco tempo no Rio e minha ocupação era ir
à praia, fumar maconha e paquerar, portanto aquela necessidade de ter de fazer
algo antes de pisar na areia me chateava. Alem do mais o que queria a velha?
Alguma reprimenda, na certa.
No dia
seguinte tomei o ônibus para ir a Ipanema pensando no grande drama de ter de
baixar antes em Copacabana para saber o que queria D. Neusa. No meio do caminho
o dia deu em nublado, como diria o poeta, e eu nunca gostei de praia com
nuvens. Sigo assim. Só vou à praia com promessa de sol constante e de rachar
mamona.
Desci próximo
à Paula Freitas onde minha mãe estava exercendo seu ofício de costureira a
domicílio. O apartamento onde trabalhava era de um dos Magalhães Pinto, creio que
Eduardo Magalhães Pinto. Desde Belo Horizonte minha mãe trabalhava para eles e
agora, que nos mudáramos para o Rio, ela fazia os consertos de cortinas ou algo
assim nesse apartamento que a rica família mantinha na cidade. Entrei pela entrada
de serviço como competia, não só por ser filho de serviçal como por estar de
sunga e sandálias de dedo. Nesse tempo eu só levava à praia minha esbelta
pessoa. O dinheiro da passagem era amarrado no cordão da sunga e as moedas
ficavam também no calção. A chave de casa eu levava atada ao pescoço como
medalhinha de santo. A camiseta, pendurada no ombro,era só para fazer figuração.
Toquei a campainha e minha mãe veio abrir-me a porta. Na verdade ela não queria
nada de especial e nem sequer perguntou se eu já arranjara algum emprego. Era só
para ver-me a cara.
No
apartamento estava só minha mãe, os banqueiros estavam em Minas e a arrumadeira
saíra. Com a cara de pau característica dos muito jovens, resolvi inspecionar o
local. A cozinha e demais dependências de serviço eram maiores do que qualquer
lugar onde eu havia morado. Fui adentrando pela copa e salas repletas de móveis.
Em cada uma delas, poltronas, divãs e sofás suficientes para mobiliar todos os
inúmeros apartamentos conjugados em que eu já vivera. E uma biblioteca. Como as
dos filmes. Uma enorme escrivaninha com várias gavetas de diversos tamanhos.
Lâmpadas, luminárias e abajures. Altíssimas poltronas de couro e uma parede
repleta de livros do teto ao chão. As lombadas dizendo títulos e nomes em dourado. Se a memória
já não confundiu esta com outras bibliotecas que vi, havia de tudo ali. Obras
completas, coleções, poetas, romancistas, ensaístas, cartografia, história.
Maravilhas para anos de leitura.
Sobre a
escrivaninha, um volume em encadernação original da editora. Tomei o livro, li
a orelha e soube que se tratava de obra de memórias e que o autor era meu
conterrâneo. Estava no Rio não fazia nem um mês mas minha mineirice já andava
saudosa das montanhas alterosas e da conversa de minha gente, assim que resolvi
levar o livro emprestado por umas horas sob os protestos de minha mãe. Mas mãe
a gente enrola.
Chegando à
praia fiz um travesseiro de areia que cobri com a camiseta e depois de olhar umas
bundas comecei a ler. Era o segundo volume das memórias de Pedro Nava: “Balão
cativo”. Durante horas estive preso à leitura do que depois eu saberia ser uma
das mais brilhantes obras de memorialística em língua portuguesa. Nesse volume
Nava narra, entre outras coisas, seu internato no Colégio Pedro II no Rio de
Janeiro. Essa passagem pelo educandário carioca e a descrição de
suas primeiras impressões do Rio, dos anos 10, é o que mais lembro desse
primeiro encontro com o escritor.
Como naquele
dia as horas passaram muito rapidamente e o céu prometia uma daquelas chuvaradas
de fim de tarde, resolvi ir embora. Passei por Copacabana e devolvi o livro ao
lugar de onde o havia retirado. Deve ter ficado um pouquinho de areia no meio
das páginas. Nada de mais. Somente anos depois pude retomar a leitura graças a
um dos maiores inventos da humanidade: a biblioteca pública.
Apesar de ter lançado seu primeiro
volume de memórias em 72, foi em 76 que tomei contato com Pedro Nava. Em 78
“Baú de ossos” já estava na 5ª edição, “Balão cativo” na 3ª e “Chão de ferro na
2ª. Nesse ano foi lançado “Beira mar” que foi seguido de “Galo-das-trevas” de
81 e “O círio perfeito” de 83.
Além dos elogios unânimes da crítica, Pedro
Nava, com suas memórias, também colecionou desafetos. Alguns familiares não
gostaram da maneira como foram retratados seus antepassados e médicos se
molestaram pelas opiniões que Nava tinha sobre a profissão que exerceu com
brilhantismo. Num dos volumes das memórias ele advoga que médicos deveriam
pertencer às classes médias da população. Não compactuava com o mercantilismo
da medicina.
Já estava “íntimo”
do autor quando um dia, voltando da casa de um amigo que vivia na Glória ,
parei no “Amarelinho” para um chopinho. Como o dinheiro só dava para um único
chope, não busquei mesa e fui direto ao balcão. Lá estava Pedro Nava tomando o
que parecia ser um uísque. Não resisti e disse-lhe:_ Boa noite Dr.Pedro. Ele
sorriu com os olhos e acenou levemente a cabeça. Entendi que aquele sorriso
significava:_Olha, eu fui simpático com você mas não me encha o saco. Não
enchi. Juro. Apenas demorei um pouco mais em beber o chope. _Quem sabe se ele
não puxava uma conversa? Não puxou.
Hoje, tenho
em meu poder apenas o quinto e o sexto volumes da obra magistral e na lembrança
as horas de puro prazer que tive enquanto a lia.
Quando morreu
Pedro Nava eu estava na Argentina. Na volta, soube da triste notícia. Tive,
acima de tudo, um sentimento de frustração por não poder mais acompanhar,
através de seus relatos, sua trajetória pela vida, longa e rica. Depois fui
morar na Lapa e tinha minha barraca de camelô em frente ao relógio da Glória. Toda
vez que o olhava, me lembrava da foto que adorna a contracapa de “Galo das
trevas”, o quinto volume de suas memórias, na edição da “José Olímpio”.
Outro dia, vi
a chamada de um programa sobre literatura que passa na TV pública e entre as
obras que seriam comentadas, estavam as memórias de Pedro Nava. Pelas capas, vi
que se tratava de nova edição e me veio a certeza que estes volumes terão uma
edição para cada geração que certamente irá se maravilhar não só com a beleza
do texto, mas com a profunda carga humana neles contida. Ademais de mestre na
língua portuguesa, Nava é um cultor da verdade, histórica e íntima.
Da obra de
Nava disse Raquel de Queirós que “é livro para mexer com a alma, o coração e a
inteligência, com as vísceras nobres do peito e as circunvoluções da
cabeça”.Portanto, se você ainda não leu Pedro Nava, aproveite a nova edição
para conhecer o que há de melhor na memorialística em língua portuguesa.
Não posso
terminar sem citar uns versos que Olavo Drummond dedicou a Nava num poema
intitulado “Canção a Pedro Nava” que abre o “Galo-das-trevas” e começa dizendo:
Pedro Nava
Doutor Pedro
Dos tempos bons das
Gerais
Pedrinho de Juiz de Fora
Por que somente
agora
Franqueaste os teus
bornais?
E termina:
Obrigado,
Pedro Nava,
Em nome de tudo mais
Das
virgens belorizontinas
Das Deusas
belorizontais!...
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