Minha mãe trabalhava fora. Às
vezes deixava comida pronta para que esquentássemos na hora do almoço, outras
vezes deixava dinheiro para que comprássemos nossas refeições. Era como dava.
Alguns dias não era nem uma coisa nem outra.
Uma vez por semana eu deixava de
usar a grana para comer e comprava a revista esportiva Placar. Aos 13 anos
eu havia assistido a maior seleção que o mundo viu jogar ser Campeã do Mundo no
México. Assim que o ano de 71 me encontrou vivendo uma dessas paixões que só
são possíveis nessa idade. Como se isso fora pouco, em dezembro daquele ano, meu
time sagrou-se o Primeiro Campeão Brasileiro da história.
Durante uns 3 ou 4 anos fui
leitor assíduo da publicação que era a única especializada naquela época.
Todavia lembro de fotos, matérias e manchetes como se houvesse folheado ontem a
revista. Uma dessas matérias que me emocionou muito tinha por título:_”Tirem a
última gaze” e contava a história de um goleiro que após um choque com o
adversário perdera parcialmente a visão. Outra matéria que mexeu comigo por
contar um fato ocorrido naqueles dias, era sobre o valente atacante Roberto do
Botafogo e da Seleção campeã de 70. Roberto rompera o tendão de Aquiles e seu
futuro no futebol era incerto. Não lembro do título da matéria mas sim de um
requadro no canto da página cujo cabeçalho soava como um mau augúrio para o
camisa 9 alvinegro:_”Calvert nunca mais”. Em poucos parágrafos citava o caso do
jogador que tivera lesão igual à de Roberto e não mais pudera exercer sua
profissão.
A revista também publicou várias
séries de reportagens das quais duas ficaram marcadas em minha memória. A
primeira era sobre grandes times da história. Um dos relatos contava a tragédia
que vitimou os jogadores do Torino quando o avião que os transportava caiu
matando toda a equipe. A outra, que li com o coração na boca, falava do Dínamo
de Kiev que durante a 2º Grande Guerra enfrentara o time das tropas alemãs que
ocupavam a Ucrânia e pagaram com a vida pela ousadia de derrotá-los. Anos
depois li a mesma história num texto de Eduardo Galeano que, se não me engano,
foi publicado no Pasquim e confesso que preferi o relato da revista ao tom
demasiado derramado do escritor uruguaio. Mas o mais decepcionante dessa
narrativa de valentia e resistência é que talvez o episódio nunca tenha
acontecido.
Já finda a guerra fria, assisti
uma reportagem que afirmava que tudo não passara de invenção da máquina de
propaganda de Stalin. E para tingir com tons ainda mais dramáticos, o autor da
matéria dizia que os jogadores daquele time tiveram de sumir nas imensidões da
União Soviética e nunca mais puderam jogar futebol para não desmentir a
história heróica.
Esta versão é verossímil pois já
não havia o inimigo comunista para ser fustigado pela imprensa ocidental, porém,
contra todas as evidências, prefiro a história dos valentes operários
ucranianos mortos num barranco, ainda de uniformes.
Outra série que ainda me lembro
bem, foi uma extensa entrevista com Almir que saiu em capítulos. O
Pernambuquinho abriu o verbo e falou do acontecido na final
do Campeonato Carioca de 66 quando jogava pelo Flamengo e promoveu o maior
quebra pau para melar a conquista do Bangu, no melhor estilo argentino. Contou
por que desprezou a Seleção. Disse das ameaças que fazia a outros jogadores
antes mesmo de começarem as partidas e citou nomes dos que afinavam. Mas o que
mais me chamou a atenção foram os casos de doping por ele relatados. No Santos,
segundo ele, rolava solto. Antes dos jogos o massagista distribuía umas laranjas
que já vinham batizadas, todos sabiam, ia na onda quem queria. Que me lembre, ele só livrou a cara de Pelé.
Ainda segundo Almir, no jogo decisivo, do Mundial Interclubes contra o Milan,
ele jogou doidão.
Poucos meses depois que essa
entrevista saiu na revista, Almir morreu assassinado na Galeria Alasca, em
Copacabana.
No Jornal do Brasil, João
Saldanha, que admirava Almir e o tinha como um valente, escreveu no dia
seguinte à morte do Pernambuquinho, belíssimo artigo que terminava dizendo que
Almir morrera como vivera; lutando. Confesso que as histórias de Almir por ele
contadas na entrevista à Placar e outras que dele contavam, nunca fizeram com
que eu o admirasse. História de valentia para mim é a do Dínamo de Kiev seja
ela verdadeira ou não.
Alguns jogadores dessa época eu
devo ter visto jogar uma ou duas vezes ou talvez só tenha lido sobre seus
feitos na Placar e colecionado suas fotos que ocupavam as páginas centrais da
revista. Não havia tanto futebol na televisão. Ainda assim, tenho vivas recordações
de seus gols e passes.
Lembro do grande Enéas que
brilhou na Lusa e do pequeno Givanildo, mandando no meio campo do Santa Cruz.
Baiaco com a 10 do Bahia. Lola o brilhante atacante do Galo que, no ano de
nossa maior conquista, havia marcado 6 gols nos 4 primeiros jogos do campeonato
mas quebrou a perna, só voltando a atuar no jogo do título contra o Botafogo.
Alberi do ABC de Natal. Jairo, o grande goleiro do Coritiba que foi o primeiro
goleiro negro a vestir a camisa da Seleção, depois de Barbosa, passados mais de
vinte anos. São muitos.
Dos que ainda são lembrados por
terem jogado nos times de maior prestígio, só vou citar Ademir da Guia. No
pôster que Placar publicou com os ganhadores da Bola de Prata de 71, estava ele,
posando para a típica foto de time; os defensores em pé e os atacantes acocorados
na frente. Todos estão com suas roupas de passeio à moda dos 70.
O Divino foi um dos maiores
jogadores de futebol que vi jogar e certamente o mais elegante. Já naqueles
tempos, os idiotas da objetividade diziam que ele era lento. Lento era o raciocínio
de muitos críticos.
Lembro-me de um jogo em que
odiei Ademir. Foi em São Paulo. O
Atlético enfrentava o Palmeiras pelo Campeonato Brasileiro de 72. Jogo parelho
até que os esmeraldinos fizeram seu gol. Daí em diante ninguém mais jogou. Só
Ademir. Tomou conta da bola, do jogo. Desfilou sua enorme categoria. Fez o que
quis.
Ademir, que não fora chamado
para integrar a Seleção de 70, vestiu a amarelinha em apenas um tempo contra a
Polônia na disputa pelo terceiro lugar da Copa de 74. Foi substituído no começo
do segundo tempo por Mirandinha. Um desperdício de talento.
Tudo que lembro daquela que foi
uma das épocas de ouro do futebol brasileiro, tem um pouco da Revista Placar
que eu comprava mesmo tendo que sacrificar o almoço. Hoje com
todos os recursos tecnológicos e dezenas de jogos passando ao vivo pela tv, a
existência de uma revista semanal de futebol ficou inviável e Placar publica
agora uma edição mensal. Nunca mais a li, prefiro ficar com a emoção das tardes
de terça-feira de minha adolescência. Assim como nunca mais vou sentir a emoção
de entrar pela primeira vez no Maracanã, creio que tampouco vou ler sobre
futebol com a mesma paixão com que lia Placar de barriga vazia.
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