quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Chibatas e pelourinhos


                Creio que a escravidão foi o fato de nossa história que mais marcou a sociedade brasileira. Marcou e marca. Imagino que em outros países, que também praticaram esse tipo de exploração, deu-se o mesmo.
                Entre nós, o racismo, que amparava ideologicamente a escravidão, foi aos poucos sendo substituído pelo preconceito de cor. Esse traço é, sem dúvida, a mais forte herança que nos deixou quase 400 anos de ignomínia escravista. Mas há outro, que criou raízes e continua sendo largamente praticado. Refiro-me aos castigos físicos. Nossa sociedade, não só os tolera como os vê como instrumento adequado de punição, de dissuasão e de boa prática educativa.
                A visão cotidiana dos suplícios impingidos aos negros nos pelourinhos das praças e nos troncos das fazendas, há menos de 130 anos atrás, brutalizou de tal forma a sociedade brasileira, que o castigo físico foi alegremente levado para dentro dos lares e se tornou utensílio pedagógico.
               Quando há pouco tempo atrás, se discutiu no parlamento punições para pais que maltratassem seus filhos, houve uma grita geral. Na TV, no rádio e nas redes sociais, um grande número de pessoas advogava pelo direito de se educar pela pancada, de se aplicar o corretivo. Na televisão, simpáticas apresentadoras faziam apologia da “palmadinha”. A vara de marmelo entrou novamente nas conversas das barbearias e botequins.
                E se há tão grande afã de punir faltas cometidas por crianças com surras e espancamentos, o que se pode esperar da nossa sociedade quando de presidiários se trata? A tortura, é claro.
                Durante a ditadura civil-militar iniciada em 64, a tortura foi “democratizada”. Já não eram apenas pobres, negros e pequenos delinqüentes que eram vítimas do ato vil. Os inimigos do regime, em sua maioria saídos das classes médias, sofreram as mais cruéis torturas e degradações.  Aí a sociedade se manifestou.
                Terminado o regime ditatorial, o Grupo Tortura Nunca Mais, cujos serviços prestados à cidadania jamais devem ser esquecidos, publicou os relatos daqueles, que nos porões da ditadura, foram vítimas de tormentos físicos e morais. Durante algum tempo, a tortura foi alvo da indignação popular. Hoje isso não mais se dá. Assim como havia sido esquecida a atuação do DIPE no Estado Novo, o que se passou durante os anos de chumbo, deixou de interessar a uma sociedade que tem o vício do revisionismo histórico.
                Mesmo nos tempos em que ocupava lugar de destaque na luta pelos direitos humanos, o Grupo Tortura Nunca Mais, pouco se manifestou com relação aos presos comuns que continuavam e continuam sofrendo torturas nas delegacias, casas de custódia e presídios. Mas, caso quisesse pronunciar-se hoje sobre o tema, sua voz seria abafada pelos Datena, Marcelo Rezende e outros que tais, que infestam a TV aberta do país. E não só por eles, como também pela sua crescente audiência que já não é só composta por iletrados das periferias. A classe média, que se vê como vítima preferencial dos bandidos, comprou com grande facilidade o discurso simplista da pena capital e do suplício físico para aqueles que infringem a lei.
               No episódio recente dos ataques a ônibus em Santa Catarina, o que detonou a revolta foram os maus tratos sofridos pela população carcerária do estado. Esse fato, só referido pelos meios de comunicação passados vários meses do início da reação violenta, teve pouca ou nenhuma repercussão, mas só o fato de citá-lo, provoca as mais histéricas reações nas redes sociais. A realidade medieval de nosso sistema prisional, não merece sequer uma palavra de indignação ou repulsa daqueles que postam fotos de cachorrinhos e frases edificantes no facebook.
              O termo “direitos humanos” é alvo de chacota ou escárnio por parte dos líderes de audiência no horário vespertino das TVs e quem ousa pronunciá-lo, recebe logo o epíteto de defensor de bandido.
              Nossa sociedade anda saudosa de chibatas e pelourinhos.




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