Creio que a escravidão foi o fato de nossa história que mais
marcou a sociedade brasileira. Marcou e marca. Imagino que em outros países,
que também praticaram esse tipo de exploração, deu-se o mesmo.
Entre nós, o racismo, que amparava ideologicamente a
escravidão, foi aos poucos sendo substituído pelo preconceito de cor. Esse
traço é, sem dúvida, a mais forte herança que nos deixou quase 400 anos de ignomínia
escravista. Mas há outro, que criou raízes e continua sendo largamente
praticado. Refiro-me aos castigos físicos. Nossa sociedade, não só os tolera
como os vê como instrumento adequado de punição, de dissuasão e de boa prática
educativa.
A visão cotidiana dos suplícios impingidos aos negros nos
pelourinhos das praças e nos troncos das fazendas, há menos de 130 anos atrás,
brutalizou de tal forma a sociedade brasileira, que o castigo físico foi
alegremente levado para dentro dos lares e se tornou utensílio pedagógico.
Quando há pouco tempo atrás, se discutiu no parlamento
punições para pais que maltratassem seus filhos, houve uma grita geral. Na TV,
no rádio e nas redes sociais, um grande número de pessoas advogava pelo direito
de se educar pela pancada, de se aplicar o corretivo. Na televisão, simpáticas
apresentadoras faziam apologia da “palmadinha”. A vara de marmelo entrou
novamente nas conversas das barbearias e botequins.
E se há tão grande afã de punir faltas cometidas por
crianças com surras e espancamentos, o que se pode esperar da nossa sociedade
quando de presidiários se trata? A tortura, é claro.
Durante a ditadura civil-militar iniciada em 64, a tortura
foi “democratizada”. Já não eram apenas pobres, negros e pequenos delinqüentes
que eram vítimas do ato vil. Os inimigos do regime, em sua maioria saídos das
classes médias, sofreram as mais cruéis torturas e degradações. Aí a sociedade se manifestou.
Terminado o regime ditatorial, o Grupo Tortura Nunca Mais,
cujos serviços prestados à cidadania jamais devem ser esquecidos, publicou os
relatos daqueles, que nos porões da ditadura, foram vítimas de tormentos
físicos e morais. Durante algum tempo, a tortura foi alvo da indignação
popular. Hoje isso não mais se dá. Assim como havia sido esquecida a atuação do
DIPE no Estado Novo, o que se passou durante os anos de chumbo, deixou de
interessar a uma sociedade que tem o vício do revisionismo histórico.
Mesmo nos tempos em que ocupava lugar de destaque na luta
pelos direitos humanos, o Grupo Tortura Nunca Mais, pouco se manifestou com
relação aos presos comuns que continuavam e continuam sofrendo torturas nas
delegacias, casas de custódia e presídios. Mas, caso quisesse pronunciar-se
hoje sobre o tema, sua voz seria abafada pelos Datena, Marcelo Rezende e outros
que tais, que infestam a TV aberta do país. E não só por eles, como também pela
sua crescente audiência que já não é só composta por iletrados das periferias.
A classe média, que se vê como vítima preferencial dos bandidos, comprou com
grande facilidade o discurso simplista da pena capital e do suplício físico
para aqueles que infringem a lei.
No episódio recente dos ataques a ônibus em Santa Catarina,
o que detonou a revolta foram os maus tratos sofridos pela população carcerária
do estado. Esse fato, só referido pelos meios de comunicação passados vários meses
do início da reação violenta, teve pouca ou nenhuma repercussão, mas só o fato
de citá-lo, provoca as mais histéricas reações nas redes sociais. A realidade medieval de nosso sistema prisional, não merece
sequer uma palavra de indignação ou repulsa daqueles que postam fotos de
cachorrinhos e frases edificantes no facebook.
O termo “direitos humanos” é alvo de chacota ou escárnio por
parte dos líderes de audiência no horário vespertino das TVs e quem ousa
pronunciá-lo, recebe logo o epíteto de defensor de bandido.
Nossa sociedade anda saudosa de chibatas e pelourinhos.
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