quinta-feira, 18 de julho de 2013

Raskolnikov de Copacabana


                 Um desses lindos dias do sul. Um frio que corta as orelhas enquanto pedalo a velha monark sob um céu sem nuvens, de um azul de doer. Dá gosto. Lembro-me do título de um livro que nunca li e nem sei seu autor: “A rua do quenta sol”. Tem jeito de ser título de livro de memórias, que nem “Na rolança do tempo” de Mário Lago que, sim, li e gostei. Hoje andei por aí quentando sol.
                Não sou um homem com os pés no chão, longe disso. Mas sou um homem de bunda no chão. Qualquer elevaçãozinha do terreno me é propícia. Sento-me com prazer na via pública e, fumando, quento sol. Pequenos burgueses, em seus trajes arrumadinhos de inverno me olham de esguelha e caminham apressados sem conhecer o gosto de quentar sol sentado no cimento da vereda olhando montanhas ao longe e tragando azul e a fumaça do roliúde mentolado, que de uns tempos pra cá, dei de fumar.
                Quento sol e me agarra uma vontade de ir pra casa e escrever. Cadê coragem? O dia magnífico nos quer todos na rua com a bunda na calçada vendo a deselegância discreta das sulistas, com um roliúde entre os dedos.
                Talvez a falta de coragem de encarar a página em branco venha do fato de estar lendo “O idiota” de Dostoiévski. O russo me deixa constrangido até para escrever a lista de compras do mercado, o rol da roupa suja. Assinar o nome diante de Dostoiévski, acanha, inibe.
                Uma vez perguntaram pro Nelson Rodrigues o que ele havia lido. Titio Nelson, como gosta de chamá-lo o Xico Sá, respondeu que havia lido Dostoiévski. O mais carioca dos pernambucanos nos conta que seu interlocutor o olhava como quem quisesse esfregar-lhe na cara sua biblioteca de 50 mil volumes. Nelson era categórico; Dostoiévski era leitura suficiente para uma vida inteira. Ele havia lido Dostoiévski, bastava.
                Pelo que eu sei, só agora encontramos traduções diretas do russo para o português, da obra do escritor genial. Líamos e, no meu caso atual, lemos traduções de traduções tendo, geralmente, o francês como ponte. Mesmo assim os relatos, os personagens, as ambientações nos comovem e absorvem. Há em Dostoiévski algo que nenhum tradutor consegue destruir. Não se trai Dostoiévski.
                Só aos vinte anos tomei contato com o russo e foi logo “Crime e castigo”. Olha, não sou de frescuras, sou pernambucano honorário e odeio mistificações, por isso não me acanha confessar que tive febre quando li “Crime e castigo” naquele verão carioca de 78. De repente comecei a sentir a presença atormentada de Raskolnikov. Eu viva meus tormentos então. Instalei meu samovar num conjugado da Av. Nossa Senhora de Copacabana e sofri.
                 Talvez aqui caiba outro talvez nesse relato. Não sei se aquela febre veio dos tormentos de Raskolnikov ou de uma mulher maluca que conheci naqueles dias. Creio que seu nome era Ana, não estou bem certo, era uma paraibana alta de amplos quadris e coxas firmes de sertaneja. Era natural da cidade de Areias. Quando digo maluca, é maluca mesmo, tarja preta. Tivemos um caso com desdobramentos novelescos, tão inverossímil que me escuso de narrar para não parecer fantasioso. Anos depois soube que Ana, se é que era esse seu nome, havia se suicidado.
                Com Ana (será esse mesmo o nome?) dormi no mais vagabundo dos hotéis que já pisei e olha que não foram poucos e sempre foram vagabundos. Ficava ali, atrás da Central e o quarto tinha um cheiro e uma aparência que só mesmo Dostoiévski para descrever. Milhares de putas e seus pobres clientes haviam suado e gozado naquela cama, nos mal lavados lençóis, na cortina, no chão encardido. Nós também.

                 No dia seguinte não fui trabalhar. Voltei pra casa e fiquei lendo “Crime e castigo” até tarde. Aos vinte anos, sobrevivendo com um salário miserável e sob o impacto do livro mais atormentado jamais escrito, eu dera para me sentir um personagem de Dostoiévski. Só depois descobri que Ana é que era essa personagem e aqui a batizo definitivamente: Ana Fiodoróvna Niévski.

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