sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Lia


Eu vivia num cantinho do Rio numa rua que não tinha nome de rua. Chamava-se Vila Rialma. Ladeira abaixo, o Catumbi, ladeira acima Santa Teresa. De frente, uma parte ainda não habitada do Morro da Coroa, ao fundo, mais pra esquerda, o Morro do Fallet.
A casa era de um casal de argentinos, Quique e Patrícia que tinham dois filhos pequenos, Matias e Jasmim. Ao lado moravam o Maurício, o Mancha Negra e o Ciro Garcia. Maurício era meu chapa desde os tempos de Copacabana.
As duas moradas eram nos andares superiores de dois sobrados contíguos. Raramente usávamos as escadas para ir de uma casa para outra, pulávamos pelas varandas. Não lembro quem viva nos pisos de baixo, se é que eram habitados.
Em frente à nossa rua, havia um campinho de futebol, o que permitia ver a rua que corria paralela à nossa, e nessa rua estava o Gouveia.
Era uma birosca que por falta de outra designação chamávamos pelo nome de seu proprietário. Aí se vendia arroz, feijão, cebola, cigarro, cachaça, cerveja e tudo mais que compõe a cesta básica. Tinha também uma mesa de sinuca pequena.
Era no Gouveia que, nos sábados de manhã, nos reuníamos, o Quique, o Maurício e eu. Patrícia ia vez por outra levando as crianças e sempre aparecia algum outro amigo que pernoitara numa das casas ou que por aí passava.
O Gouveia, propriamente dito, tinha uma boa cara amarrada de dono de birosca, pouco sorria ou falava. Fiava às vezes. Nos sábados, ele também estava festivo e preparava para si, num imenso copo duplo, uma mistura de muitas bebidas destiladas que ia debicando devagar.
Patrícia se sentava ao lado de um caixote de cebolas e meio à sorrelfa, meio descarada as ia descascando e comendo-as cruas à modo de tira-gosto.
Não lembro sobre o que conversávamos, mas sim dos rostos sempre sorridentes dos amigos. Quique movia muito a cabeça, daí seu apelido: Canário. Maurício era imbatível no bom humor e nos palavrões que soltava como exclamações e interjeições, a torto e a direito.
Foi  no Gouveia que conheci Lia. Acho que ela dormira na casa de alguma amiga que viva aí por perto. Talvez a Beth, não sei. Sei que a vi, alta, com sua postura de bailarina, as costas muito eretas e pernas que não acabavam mais. Tão morena tropicana, tão mulata assanhada com seus cabelos muitos de muitos cachos e um sorriso doce e cativante cheio de brejeirice. Era de perder o juízo, a compostura. Eu fiquei encantado.
 Hoje fico imaginando a cara de babaca que eu devo ter posto diante daquela visão. Lia tinha 19 anos, usava umas calças brancas, justas, que torneavam suas pernas e sua bunda de novelo. Ficou pouco tempo entre nós e foi-se ladeira abaixo levando atrás de si meus olhos compridos de vinte e poucos anos.
Anos depois, estávamos, Lia e eu, na sua casa  tendo um desses papos que prometem mudar o curso da história. Discutíamos sobre a rivalidade entre Marlene e Emilinha Borba. Ambos preferíamos Marlene. 
Lia, que não é mulher de dar opinião que não justifique, disse, para desabonar Emilinha, que a Preferida da Marinha era muito “assim” e, dito isto, levantou os dois dedos indicadores na altura dos ombros alternando um e outro num movimento de sobe e desce. Aquilo era Emilinha sem tirar nem pôr.

Hoje, sempre que vejo Emilinha nos velhos filmes da Atlântida ou mesmo quando ouço seu nome, lembro de Lia e daquelas manhãs de sábado no Gouveia.

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