Eu vivia num
cantinho do Rio numa rua que não tinha nome de rua. Chamava-se Vila Rialma. Ladeira
abaixo, o Catumbi, ladeira acima Santa Teresa. De frente, uma parte ainda não
habitada do Morro da Coroa, ao fundo, mais pra esquerda, o Morro do Fallet.
A casa era de um
casal de argentinos, Quique e Patrícia que tinham dois filhos pequenos, Matias
e Jasmim. Ao lado moravam o Maurício, o Mancha Negra e o Ciro Garcia. Maurício
era meu chapa desde os tempos de Copacabana.
As duas moradas
eram nos andares superiores de dois sobrados contíguos. Raramente usávamos as
escadas para ir de uma casa para outra, pulávamos pelas varandas. Não lembro quem
viva nos pisos de baixo, se é que eram habitados.
Em frente à nossa rua, havia um campinho de futebol, o que permitia ver a rua que corria
paralela à nossa, e nessa rua estava o Gouveia.
Era uma birosca
que por falta de outra designação chamávamos pelo nome de seu proprietário. Aí
se vendia arroz, feijão, cebola, cigarro, cachaça, cerveja e tudo mais que
compõe a cesta básica. Tinha também uma mesa de sinuca pequena.
Era no Gouveia
que, nos sábados de manhã, nos reuníamos, o Quique, o Maurício e eu. Patrícia ia
vez por outra levando as crianças e sempre aparecia algum outro amigo que
pernoitara numa das casas ou que por aí passava.
O Gouveia,
propriamente dito, tinha uma boa cara amarrada de dono de birosca, pouco sorria
ou falava. Fiava às vezes. Nos sábados, ele também estava festivo e preparava para
si, num imenso copo duplo, uma mistura de muitas bebidas destiladas que ia debicando
devagar.
Patrícia se
sentava ao lado de um caixote de cebolas e meio à sorrelfa, meio descarada as
ia descascando e comendo-as cruas à modo de tira-gosto.
Não lembro sobre
o que conversávamos, mas sim dos rostos sempre sorridentes dos amigos. Quique
movia muito a cabeça, daí seu apelido: Canário. Maurício era imbatível no bom humor e nos palavrões que soltava como exclamações e interjeições, a torto e a direito.
Foi no
Gouveia que conheci Lia. Acho que ela dormira na casa de alguma amiga que viva
aí por perto. Talvez a Beth, não sei. Sei que a vi, alta, com sua postura de
bailarina, as costas muito eretas e pernas que não acabavam mais. Tão morena
tropicana, tão mulata assanhada com seus cabelos muitos de muitos cachos e um sorriso doce e cativante cheio de brejeirice. Era
de perder o juízo, a compostura. Eu fiquei encantado.
Hoje fico
imaginando a cara de babaca que eu devo ter posto diante daquela visão. Lia
tinha 19 anos, usava umas calças brancas, justas, que torneavam suas pernas e
sua bunda de novelo. Ficou pouco tempo entre nós e foi-se ladeira abaixo levando atrás de
si meus olhos compridos de vinte e poucos anos.
Anos depois,
estávamos, Lia e eu, na sua casa tendo um
desses papos que prometem mudar o curso da história. Discutíamos sobre a
rivalidade entre Marlene e Emilinha Borba. Ambos preferíamos Marlene.
Lia, que
não é mulher de dar opinião que não justifique, disse, para desabonar Emilinha,
que a Preferida da Marinha era muito “assim” e, dito isto, levantou os dois
dedos indicadores na altura dos ombros alternando
um e outro num movimento de sobe e desce. Aquilo era Emilinha sem tirar nem pôr.
Hoje, sempre que
vejo Emilinha nos velhos filmes da Atlântida ou mesmo quando ouço seu nome,
lembro de Lia e daquelas manhãs de sábado no Gouveia.
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