Há muito que
passei dos 50 e as coisas já não são as mesmas. Depois dessa idade-marco, dessa
idade-limite, começa a falhar o que era nossa fonte de orgulho e de satisfação.
Nossa única maneira de prolongar a juventude. Refiro-me à memória, é
claro, amiga licenciosa e debochada. O baú da cachola, já cheio de inutilidades
mais contemporâneas, vai aos poucos escondendo certos tesouros no seu fundo.
Quer um exemplo? Não sei se gosto de
biografias, pois não recordo se li muitas ou poucas. Nesse dia nublado de minha
consciência, só me lembro de ter lido a biografia do Garrincha escrita por Rui
Castro. De outros personagens posso ter lido pequenos artigos biográficos ou
ter visto documentários. Realmente não lembro. Os retalhos de vidas alheias
estão lá, no fundo daquele baú sob toneladas de outras memórias inúteis.
Sei sim que
gosto de autobiografias. Desde a obra gigantesca de Nava, que conheci ainda
jovem, passei a amar o gênero. O “Confieso que he vivido” de Neruda também me
tocou, embora me pareça obra pouco cuidada. Acho que quando li as memórias do
poeta chileno, me passou pela cabeça que
faltava poesia no relato. É muita pretensão, eu sei, mas creio que foi isso o
que pensei na época, se a memória das sensações não me falha.
Talvez a
autobiografia que mais se enquadra naquela definição de que toda autobiografia
é uma obra de ficção, seja a de Luis Buñel. Gostei do tom que o cineasta usou
para relatar sua vida e seu ofício. Realmente tem muito de ficção, mas pelo
menos é ficção criada pelo dono da vida, pelo protagonista da estória, pois
afinal uma biografia escrita por outrem, autorizada ou não, também transita
pelo terreno ficcional. Biografias são, penso eu, obras de amor ou ódio, nada
menos. Ama-se ou odeia-se adornando de invencionice o objeto desses
sentimentos. A imparcialidade é vedada ao ser humano. Na melhor das hipóteses
sempre haverá a simpatia e seu antagônico.
Como você já
notou, estou voltando ao assunto das biografias não autorizadas.
Pois é, enfim
cheguei a uma conclusão sobre o tema. Deixei de pensar nos aspectos jurídicos,
filosóficos e outros que tais. Deixei de levar em conta a campanha injuriosa
que os defensores da liberdade de imiscuir-se na vida alheia perpetraram. Deixei
pra lá o cotejar das idéias dos outros. Deixei de sopesar argumentos prenhes de
citações eruditas. Resolvi consultar o único oráculo que me tem sido fiel em
todos os erros: meus botões.
Foi depois dessa
consulta que conclui que escrever biografias é imoral. Sob todos os aspectos é
imoral. Seja exercendo a arte da louvaminha e do panegírico ou buscando nas
fraquezas humanas o mote para o texto, biografar é imoral, é antiético, é,
muitas vezes, desumano. Expor a intimidade de alguém que não deseja ver suas vicissitudes dadas ao julgamento público, é
um desrespeito, um atentado à dignidade humana.
Biografia é a
fofoca com título de bacharel, é o fuxico que recebe subvenção estatal, é a
maledicência que quer entrar na academia. Biografando, se enaltece o canalha
amigo tão facilmente quanto se execra o desafeto.
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