Quando morei na Argentina estava no fim o governo de Raul
Alfonsin. Era uma época de caos. Inflação, levantes militares, recessão
econômica e escândalos de corrupção faziam parte do cotidiano. Dizia-se que
1000 empresas fechavam suas portas a cada mês e que os trens urbanos davam um
prejuízo diário de 1 milhão de dólares.
A questão dos trens me parecia óbvia: era o sistema de
cobrança das passagens. Diferentemente dos trens cariocas que eu conhecia, a
venda de bilhetes nos trens argentinos era feita num guichê já dentro da gare .
Um cobrador ia de passageiro em passageiro perfurando os bilhetes dos que já
haviam pagado e cobrando os distraídos. Além do mais, os preços variavam de
acordo com o trajeto percorrido. Pouca gente pagava e quem pagava comprava o
bilhete mínimo. Os jovens e os muito duros trocavam de vagão a cada estação
para evitar o cobrador e sua maquininha de perfurar bilhetes.
Nelson Rodrigues já disse que só os santos e os sábios vêem o
óbvio, e eu não possuo santidade nem sabedoria. O que me parecia óbvio era
apenas o disfarce, o engodo, a ineficiência planejada. O que estava por trás do
prejuízo de 1 milhão de dólares era a sanha privatista que por aqueles dias
entusiasmava os incautos e os simplistas. Tanto era assim que ao regressar ao
Brasil, em 1990 comecei a ler na imprensa daqui que os trens cariocas davam um
prejuízo de 1 milhão de dólares, diariamente. Pois é, a mesma quantia, uma
coincidência dos diabos.
Naqueles tempos 1
milhão de dólares era algo que assustava. A quantia redonda e em moeda estrangeira
fugindo dos cofres públicos diariamente, fazia a opinião pública pender para as
teses privatistas. Havia que se estancar a hemorragia e a iniciativa privada
estava aí para contribuir com o progresso do país. Com um pequeno, modesto
lucro, é claro.
Lá e cá os trens foram
privatizados. As passagens, que eram baratas, se tornaram tão caras quanto as
dos ônibus e dos metrôs e os acidentes começaram a acontecer tanto lá como cá.
Acidentes de vulto, com mortos e feridos. Numa única estação de Buenos Aires
houve dois acidentes com vítimas fatais e aqui ficou comum vermos nas
reportagens da TV passageiros caminhando sobre as vias depois de mais um
acidente ou pane no sistema.
A propalada ineficiência do serviço público foi o mote para a
entrega de empresas lucrativas e consolidadas ao capital privado. Não se
procurou melhorar o desempenho dos administradores, não se cogitou qualificar
quadros, não se pensou em um “choque de gestão”. Fizeram o que fez aquele
marido que ao chegar em casa encontra sua mulher e seu melhor amigo no sofá da
sala em colóquio de amor, como diz o samba de Moreira da Silva. E o que fez
o marido traído? Botou na rua a adúltera? Quebrou a cara do Ricardão? Não, o
homem vendeu o sofá.
Com o escândalo da Petrobrás e sua repercussão poucos serão
os que proporão o saneamento da empresa, a valorização de seus funcionários de
carreira, a ocupação dos cargos de segundo e terceiro escalão por técnicos
gabaritados, a transparência de seus contratos. Vão querer vender o sofá.
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