Enquanto esperava pelo jogo Santos
e Barcelona, que assisti com o som da tv desligado, fiquei rememorando as
últimas informações que os jornalistas esportivos nos deram em suas entradas ao
vivo, desde o Japão,e nas transmissões dos jogos anteriores. Eu disse
“informações”? Já comecei mal.
Não são
fatos o que trazem esses jornalistas e sim uma enciclopédia de estereótipos já
consagrados. Por eles só fico sabendo da educação estremada do povo japonês, da
sabedoria oriental, do respeito aos mais velhos que aquela cultura exalta, da
limpeza das ruas, da enorme tecnologia presente até em seus vasos sanitários.
Sobre episódios recentes da vida japonesa, nada. Fukushima jamais existiu no
imaginário de nossos patrícios que exercem a crônica esportiva.
Quando em setembro de 1945 os
japoneses assinaram a rendição na segunda grande guerra, seu imperador Hirohito
foi obrigado a fazer uma aparição pública e renunciar à sua divindade.Pela
primeira vez na milenar história daquele país, o povo pode ver a face de um imperador.
Imagino a decepção. O líder que por anos os fizera lutar em nome das tradições
japonesas e repúdio ao domínio ocidental no oriente, apareceu num palanque de
madeira sem adornos, mais parecendo um patíbulo que outra coisa. Trajava uma
ridícula casaca que o fazia parecer-se a um besouro anão e seria motivo de riso
até para a barata do Kafka, no rosto levava um bigode mal aparado em nada
parecido às extravagâncias capilares dos samurais e shoguns e na cabeça um
chapéu mais ocidental que o rebolado de Rita Hayworth. Ainda por cima vinha
dizer que não era deus na terra e, com a graça dos americanos, seria apenas
chefe de estado. Seus generais já haviam sido enforcados por crimes de guerra
em seu lugar. Ele, que até o fim dizia que a rendição seria inaceitável, a
aceitara em troca de seu pescoço imperial e divino. E é claro, devido à
evidência que “fat man” e “little boy” mostraram.
Entre Hiroshima e Fukushima, o
Japão tornou-se potência tecnológica e econômica e nos é mostrada como uma
espécie de shangri-lá com terremotos pela televisão tupiniquim. Mas o que os
olhos vêem o estereótipo apaga e nossos “enviados especiais” sequer enxergam
que a simpatia reservada aos turistas é tão universal quanto à coca-cola. De
Xerém a Kobi o gringo é bem recebido porque traz a grana. Que o respeito aos
mais velhos é na verdade um respeito aos mais ricos.Lá e cá. Velho pobre tem
que se valer da segurança social que sempre se mostrou mais evidente nos países
ocidentais.O convívio de várias gerações sob o mesmo teto nada tem a ver com
respeito à sabedoria e sim com falta de aposentadorias dignas que tornariam os
velhos independentes da chatura de noras e netos adolescentes.
Mas para nosso espanto, ficamos
sabendo que nas ruas do Japão não se encontra nem um fio de cabelo no chão e
que poucos dias após o tsunami, estradas inteiras haviam sido
reconstruídas.Pouco importa se crianças comeram carne contaminada inspecionada
e liberada pelo governo e que a demora de um mês em ampliar a área a ser
evacuada em torno da usina atômica avariada, fez com que milhares de pessoas
ficassem expostas, desnecessariamente, à radiação. Tudo para evitar a desordem
que uma fuga em massa dos locais contaminados provocaria. Os japoneses odeiam a
desordem. Sofisticados equipamentos de
detecção de radiação diziam o contrário mas o governo japonês ordenou que
ficassem em casa. Uma
simples dose de iodo poderia ter evitado a contaminação radioativa.(O iodo não
radioativo ingerido antes ou pouco tempo depois do contato com isótopos
radioativos de iodo impede que a radiatividade seja absorvida pela tireóide) Em
poucos anos saberemos os resultados dessa conduta governamental.
A ordem com que se comportam os
japoneses também é motivo de admiração para os jornalistas esportivos brazucas
que visitam aquele país. Quem os ouve tecer tantos elogios ao comportamento
ordeiro, pensaria que essas pessoas jamais jogaram lixo na rua ou estacionaram
seus carros em local proibido. Para eles é digno de nota que até para se
suicidar os japoneses são ordeiros e respeitam as tradições. Mas como o Japão é
o recordista mundial em suicídio infanto-juvenil, algum deslize deve-se esperar
dos que praticam a milenar tradição do harakiri em tenra idade. Má influência
ocidental, de certo.
No entanto se há algo em que o
Japão se destaca é na tecnologia, e não só na tecnologia inútil dos jogos de
vídeo e outros que tais. Os japoneses são bons em máquinas e equipamentos e no
mundo das telecomunicações encontram poucos concorrentes.Como isso é fato
inconteste, muito me surpreendi quando vi no canal japonês por ocasião do
desastre nuclear de Fukushima, que durante as reportagens de rua e nos estúdios
apareciam cartazes escritos que eram manipulados por algum ajudante do
repórter. Mesmo durante as entrevistas coletivas com os responsáveis pela usina
nuclear acidentada, que sempre vestiam uniformes muito grandes para seus corpos
diminutos, havia os tais cartazes. Se a cena já era patética pelas caras de
passarinhos tristes que todos ostentavam e pelos uniformes comprados, de certo,
pelas mães dos diretores da usina nuclear, (as mães sempre compram roupas um
número maior pensando no rápido crescimento dos filhos mesmo que estes já
tenham 32 anos) os gráficos e dizeres, mostrados dessa maneira tão rudimentar,
davam ao todo um aspecto de pobreza tecnológica da televisão dos anos 60 e me
fazia lembrar da TV Tupy, da propaganda do sabão Rinso e, claro, do National
Kid.
Talvez o problema dos japoneses
é que apesar de terem contribuído para o mundo com muitas coisas realmente
geniais, o ocidente cisma em destaca-los por suas bobagens. Assim é com seus “anime”.
O nome não disfarça o que é, mas pelo menos não temos que dizer “desenho
animado” para algo tão desanimado. São desenhos que nada têm de movimento, pelo
contrário, são figuras estáticas cujo único esboço de animação fica por conta
de uns olhos enormes que abrem e fecham a cada quadro.(Os japoneses crêem que
possuem olhos como aqueles) Mas se visualmente são feios, o que se pode dizer
dos enredos? São dramalhões que fazem
novelas mexicanas parecerem um baile gay de carnaval. Quem sabe aí não esteja
um dos fatores que levam tantas crianças ao suicídio naquele país?
Parentes dos “anime”, os “mangá”
também são uma febre no Japão. Certa vez li que 50% do papel para impressão
japonês é usado para editar essas histórias em quadrinhos. O número
me parece exagerado, mas se estiver correto, livros, jornais, revistas,
folhetos, cartões de visita, notas fiscais e propagandas em geral, dividem a
outra metade. Dessas publicações há para todos os gostos. Infantis, juvenis,
adultas, cômicas, trágicas, eróticas e históricas. Na terra de Mishima e
Kenzaburo Oe, quem manda é Gocu.
O fascínio pelos heróis mascarados talvez
baste para explicar porque sempre vemos, em cenas filmadas nas ruas do Japão,
pessoas usando estúpidas máscaras cirúrgicas. Esse infantilismo contagiou outro
ser pouco amadurecido e a figura de Michael Jackson usando uma máscara na cor
preta sempre me vem à mente quando assisto as notícias referentes ao julgamento
do médico do “rei do pop”.
Porém nada mais fascinante para os parvos
ocidentais que a tradição.Pode-se dizer que a maior tradição japonesa é a
tradição. Para todos os atos humanos há uma prática tradicional. Mesmo que essas
tradições se mostrem ridículas como o cerimonial que se deve seguir para tomar
o chá em minúsculas xícaras, a arte das gueixas ou a inutilidade do bonzai. Não
importa. Os japoneses souberam vender seu peixe cru e mesmo quando os recebemos
no ocidente, suas frescuras são seguidas aqui também. Grandes empresas dão
cursos para que seus executivos não molestem os clientes ou fornecedores
japoneses com atitudes ocidentais. Mas se agradam por aqui, entre seus vizinhos
do extremo oriente, sua fama está mais ligada ao imperialismo, aos massacres,
como o de Nanquim,.e ao racismo. Para os chineses, a melhor tradição japonesa é
a bomba atômica.